Quero começar reconhecendo a dificuldade na lida com um filme que reúne tantas camadas de complexidade, e que é, além disso, uma experiência sensorial, perceptiva, emocional, muito forte, muito difícil de abordar criticamente. Reconhecer também, de saída, que não sou uma especialista nesse oceano imenso que é a obra artística de Marguerite Duras. Impactada pelo filme e convidada a falar e escrever sobre ele, reuni algum material que apresento a vocês neste texto. Preservo aqui o tom coloquial da sessão comentada.
Mencionei camadas de complexidade, e talvez seja um bom começo indicar as relações intertextuais que India Song entretece com outros trabalhos da vasta produção artística de Duras. Esse filme, que se desdobra de um texto teatral prévio (comissionado por uma instituição britânica), retoma personagens da literatura de Duras, presentes em romances do chamado “ciclo indiano” de sua produção: O deslumbramento (1964) e O Vice-Cônsul (1965). A história da personagem Anne Marie Stretter, a mulher do embaixador da França em Calcutá (história que se passa nos anos 30 do século XX), aparece primeiramente nesses dois romances, especialmente em O Vice-Cônsul, no qual ela é uma personagem importante - mas que vai ganhar ainda maior centralidade no texto dramático e no filme India Song, realizados 10 anos depois do lançamento dos livros. Outros personagens - como o próprio vice-cônsul e a andarilha cuja história é referida por algumas das vozes narradoras no filme - também estavam presentes na literatura de Duras, antes de serem transportados para a forma fílmica.
India Song começa com a imagem de um sol vermelho crepuscular que se dissolve no céu (referência ao tempo das monções de calor e estio, na Índia), sobre a qual ouvimos duas vozes femininas que dialogam, comentando a história da andarilha, mulher misteriosa que comparece apenas sonoramente no filme. No romance O Vice-Cônsul, ela é uma personagem de destaque, mas também tem sua história narrada por outro personagem, o escritor Richard Morgan, amigo do embaixador francês em Calcutá. Trata-se assim de uma narrativa especular, em que uma história se encaixa na outra: parte significativa do livro corresponde à narrativa – por Morgan – da trajetória dessa moça que parte de Savannaketh, no Laos, então Indochina, expulsa de casa pela mãe, aos 17 anos de idade, por ter engravidado, e que passa a vagar, errante, faminta, solitária, sem saber bem para onde ir. A andarilha doa sua filha, que nasce e adoece pelo caminho, a uma família branca, e caminha durante 10 anos até chegar a Calcutá, onde se fixa, às margens do Ganges, junto a leprosos, miseráveis e outros andarilhos como ela. Essa história divide espaço com o enigma e a loucura do personagem que intitula o romance: o vice-cônsul da França em Lahore - esse homem, também presente no filme, que, em um surto nervoso, teria atirado contra leprosos e cães no Jardim de Shalimar, e que vive, no presente narrativo, uma espécie de limbo diplomático em Calcutá, na dependência do que o embaixador francês fará de seu destino.
Nesse meio-tempo, o vice-cônsul se deixa fascinar pela figura de Anne-Marie, a mulher do embaixador, personagem também enigmática, também exilada, “prisioneira de uma espécie de sofrimento” (como uma das vozes a ela se refere, no filme). O romance de Duras é analisado sob a chave do espelhamento, sobretudo entre a andarilha e Anne Marie. De saída, a experiência de uma parece o reflexo invertido da outra: a mendiga sofre a ocupação colonial, a mulher do embaixador é parte da elite branca ocupante. Mas também o vice-cônsul é trazido para esses jogos de espelhos. Em um dos diálogos do filme (sempre sobrepostos às imagens), ele afirma que Anne Marie não precisa estar com ele, já que ela estaria nele: sugere-se assim a partilha de algo essencial, talvez o mal estar incontornável compartilhado por ambos, beneficiários diretos do colonialismo em um contexto de colonização violenta.
No filme, os personagens dos romances retornam como presenças fantasmáticas, cujas histórias não são propriamente encenadas, mas "ditas" por inúmeras vozes. Acessamos apenas a fragmentos de suas experiências, contadas por outros e outras, o que não é totalmente estranho à forma dos romances. A cena do baile na embaixada, por exemplo, que tem espaço importante no filme, é pontuada, em O Vice-Cônsul, por frases que começam com: "dizem que....", "contam que...". Penso que essas células narrativas incompletas vão se esgarçando ainda mais, tornando-se mais fragmentárias e lacunares, na passagem da literatura ao cinema. Se no romance as histórias da mendiga e de Anne Marie já não se fechavam, no filme a sua retomada - e de uma certa geografia - se dá de maneira ainda mais alusiva, incompleta. Como se rememoradas de modo cada vez mais distante.
Marguerite Duras se referiu a India Song – assim como a muito de seu trabalho literário, cinematográfico e teatral – como autobiográfico. Não porque essas obras elaborem sua própria experiência – ela que, filha de pais franceses, nasceu em 1914 na Indochina, então colônia francesa, onde passou sua infância e adolescência, antes de partir para Paris aos 18 anos, em 1932[1]. Mas sim porque trabalhos como O Vice-Cônsul ou India Song teriam se desdobrado de suas memórias e reflexões sobre pessoas, paisagens, situações que ela própria testemunhou ou ouviu contar quando criança e adolescente, na Indochina, hoje Vietnam. Anne Marie Stretter, a protagonista do filme, por exemplo, teria sido inspirada numa mulher da elite branca local, esposa de um administrador colonial. No caso do “ciclo indiano”, Duras amplia o quadro “colonial” para além daquele espaço onde ela própria viveu, transportando as personagens para Calcutá, na Índia, colônia britânica - e tomando, nesse movimento, algumas liberdades (nunca houve embaixada francesa em Calcutá, por exemplo). A esse respeito, Adrian Martin (2008) escreve[2]: “Duras abstrai duas diferentes situações de colonialismo, de modo a equalizá-las como material para seu melodrama modernista e minimalista das paixões. Mesmo associações sócio ou geo-políticas específicas se traduzem em alegorias da paixão para Duras”.
No argumento do autor, esses romances em torno de exilados, expatriados, errantes (caso paradigmático da andarilha), personagens deslocadas pela colonização (como experimentou a própria autora), resultam também, portanto, de muitos deslocamentos – a experiência de Duras de uma infância na Indochina alimenta a imaginação de uma decadente elite branca colonial na Índia. E essa imaginação, no caso do filme India Song, é materializada em imagens na França, mais especificamente no Palácio de Rothschild, nos arredores de Paris, onde o filme foi rodado. Ainda segundo Martin: “Da Indochina para a Índia e para a França: essa sucessão de deslocamentos, geográficos e temporais, nos conduz finalmente a um inusual espaço-tempo que parece pertencer somente ao cinema (e mais exatamente ao desenvolvimento desse filme único).”
Feito esse longo preâmbulo em torno das conexões intertextuais entre filme e literatura de Duras, penso que podemos entrar de maneira mais direta na economia estética do filme, aproveitando a última citação de Adrian Martin. Trata-se de um filme de poucas locações, trabalhadas de modo muito cuidadoso e rigoroso nas imagens. As cenas se alternam, com raras exceções (como as cenas nas ilhas), entre a sala da embaixada francesa (onde estão alguns objetos de cena importantes e reiterados, como o piano, com a partitura de India Song, os abajures, os porta-retratos, e sobretudo o espelho) e o lado de fora: em belíssimos planos em movimento lento, a câmera dá a ver algo do exterior da embaixada (a quadra, as árvores na penumbra da noite que chega). Dentro do palácio, a câmera também se move lentamente, dando a ver espaços preenchidos de objetos, mas muitas vezes vazios de presença humana. Na cena do baile, por exemplo, os corpos estão presentes, mas de uma maneira muito singular: disfuncional, hierática, empostada. Não raramente, os personagens postam-se em quadro olhando ou se dirigindo para fora: para algo que se passa alhures, fora de campo, e a que não temos acesso visual.
A mise en scène é deliberadamente desdramatizante, recusa o psicologismo, chegando ao extremo do tableau vivant (os personagens em pose, como que imobilizados para uma fotografia). É como se o filme reunisse os elementos mínimos necessários a uma encenação naturalista – cenário, atores, figurinos, e também música, diálogos e narrações – mas os elementos não cumprissem o que deles se espera, nem se combinassem da maneira esperada. A começar pelo movimento dos corpos, desacelerado: eles parecem desfilar pelo cenário, como fantasmas do passado. Não há coincidência entre os diálogos e a situação de enunciação das falas pelos atores – por vezes eles estão em cena (como quando Anne Marie dança com o vice-cônsul no baile), ouvimos o que dizem (vozes sobrepostas às imagens), mas seus lábios permanecem fechados. Eles não agem (no sentido da ação dramática, motivada, e que terá consequências). Apenam estão ali: dançam, se postam, se olham.
É verdade que esse singular minimalismo visual do filme é marcado por muito rigor e sofisticação - nas marcações de mise en scène; na presença dos espelhos (que reduplicam o espaço visual da cena, produzindo composições intrincadas, complicando os jogos de olhares); na atuação hierática mas ainda assim intensa de grande atores, como Delphine Seyrig (Anne Marie Stretter) e Michael Londale (o vice-cônsul). E ainda não me referi àquele que é, provavelmente, o aspecto mais singular de Índia Song: a presença decisiva das vozes narradoras, e as relações que estabelecem com o que vemos e o que não vemos.
Em seu artigo, Adrian Martin comenta como as novas ondas cinematográficas dos anos 60 implodiram as funções habituais da narração, liberando-a em muitas direções. Para situar India Song, ele argumenta que, nos anos 70, alguns diretores e diretoras (caso de Duras e Manoel de Oliveira, entre outros) vão levar ainda mais longe o radicalismo dos experimentos com as vozes narradoras que já se observava nos 60. India Song seria um exemplar incontornável nesse sentido. São filmes nos quais, para Martin, a relação convencional entre eventos visuais e narração verbal é invertida. As imagens podem mostrar ou propor muito pouco – ele cita como exemplo o tableau vivant de um grupo de personagens estranhamente estático, em Índia Song – mas a narração, desdobrada em muitas vozes e modulações, oferece um tecido múltiplo de perspectivas, informações narrativas e reflexões sobre os eventos visuais: o que aconteceu antes, durante e depois; seu conteúdo; sugestões de sentidos; relações entre as personagens.
Se algumas vozes correspondem a diálogos entre personagens (cuja conversa nunca vemos ocorrer diretamente na imagem), outras são enunciadas não sabemos de qual espaço-tempo: quem fala? qual é a relação entre quem fala e as personagens que vemos (ou que não vemos) na imagem, com os espaços em quadro, com o tempo evocado?
Na trilha da argumentação de Adrian Martin, penso ser possível afirmar que, mesmo sendo a narração complexa, múltipla, literária, o filme que resulta é "minimalista" na imagem. India Song seria um filme chave nessa pequena tradição, sugerida pelo autor, de trabalhos simultaneamente minimalistas na imagem e literários na narração. De fato, impressiona como imagens e sons se tocam de múltiplas maneiras, às vezes se separam, sem nunca constituir efetivamente uma narrativa coesa ou completa, que o espectador possa dominar. Trata-se de fragmentos, de memórias esgarçadas de um mundo singularmente narrado, relacionadas a imagens que primam pela inação, por personagens que se postam estranhamente nos espaços, como que saídos das velhas fotografias que vemos no cenário, distribuídas em porta-retratos.
Voltemos ao começo do filme. No primeiro plano, o sol vermelho se dissolve no céu. As vozes femininas falam da "mendiga", conversam sobre ela; antes, no decorrer do mesmo plano, ouvíramos seu canto, sua voz pontuando a sequência de abertura em uma língua desconhecida, não traduzida. Entra a música tema, India Song, e a imagem nos transporta para dentro da embaixada francesa, um serviçal indiano acende incensos, velas, luzes. As vozes agora falam "dela", de Anne Marie Stretter, abordando a história de seu romance com Michael Richardson, amante que teria deixado tudo para segui-la na Índia. Rodeada por admiradores e amantes, Anne Marie é sempre objeto do desejo deles, pouco sabemos sobre seu próprio desejo: ela "se deixou levar" aos 18 anos, quando conheceu o embaixador francês na Indochina, para onde fora ao se casar com um administrador colonial. Seguiu com o embaixador por 17 anos, até se fixar em Calcutá – "onde morrerá", como antecipam as vozes. Ainda não vimos Anne Marie Stretter, a protagonista, e já sabemos, pelas vozes, que está morta. O que reforça o caráter fantasmático de suas aparições.
Para fora do mundo de aparências, regrado e luxuoso, da embaixada francesa, se estende a miséria colonial, fora de campo. Como escreveu Luiz Carlos Oliveira Jr. (2020), trata-se de uma câmara de ecos: "esse universo fechado é uma caixa de ressonância para o que vem do mundo exterior, do passado colonial, do fora de campo, da História"[3]. Talvez o que os três personagens centrais - a andarilha, o vice-cônsul e Anne Marie - tenham em comum, como já sugerido, seja justamente o exílio (não apenas geográfico, mas subjetivo), a solidão, o desgarramento, a fronteira da loucura... Mas, escreve Duras (2009)[4]: “ a mendiga é a única que não é uma personagem trágica, a única que escapa dos constrangimentos de um destino pré-traçado”. A mulher asiática sobrevive, enquanto Anne Marie se joga no mar agitado e morre afogada. Para David Melville (2009)[5], “se o destino de Anne Marie é, de algum modo, emblemático, é como um memorial para os sonhos condenados e ilegítimos do império colonial francês (e, por extensão, de toda a Europa)". Confinados em suas vidas, em seus mundos, em suas paixões, os personagens de Duras, figurações da elite branca colonial, parecem dançar por mais alguns instantes, antes de se imobilizarem definitivamente.
[1] Uma exceção, que vai na direção mais diretamente autobiográfica, é seu romance mais conhecido, O amante (cuja adaptação para o cinema, em 1992, por Jean-Jacques Annaud, Marguerite Duras teria detestado).
[2] https://www.filmcritic.com.au/reviews/i/india_song.html. Tradução nossa.
[3] https://www2.ufjf.br/cinemovimento/sessao-ensaio-critico/2020-2/maio/india-song-1975-de-marguerite-duras-3/
[4] Ver o texto de David Melville, "The Ghosts of Parties Past: Exorcising India Song", http://www.sensesofcinema.com/2009/cteq/india-song/
[5] http://www.sensesofcinema.com/2009/cteq/india-song/
Este ensaio foi escrito por Cláudia Mesquita, professora e pesquisadora, em complementação à sessão comentada de "Indian Song" (Marguerite Duras, França, 1975), exibida na faixa de programação História Permanente do Cinema, no dia 23 de Março de 2023, como parte da mostra "Clássicas: Parte III".
Sobre a autora
Claudia Mesquita é professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação em Comunicação Social da UFMG, onde integra os grupos de pesquisa Poéticas da Experiência e Poéticas Femininas, Políticas Feministas. Pesquisadora do cinema brasileiro, com mestrado e doutorado na ECA-USP, e pós-doutorado na UFC. Em seus artigos recentes, tem trabalhado articulações entre elaborações fílmicas e históricas. Publicou, com Consuelo Lins, o livro "Filmar o real - sobre o documentário brasileiro contemporâneo" (Editora Jorge Zahar, 2008), e organizou, com Maria Campaña Ramia, "El otro cine de Eduardo Coutinho" (Cinememoria e Edoc, 2012), publicado no Equador.
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