Na primeira aparição de Fausta em Romance da empregada (Bruno Barreto, 1988), a personagem cruza a Estação Leopoldina em direção ao embarque e, ao se abaixar para pegar a bolsa que caiu no chão, recebe assovios e comentários de alguns homens por ali. Fausta se vira, pergunta se eles nunca viram bunda e os xinga, irritada. O espectador já percebe que ela não leva desaforo para casa. A seguir, Fausta toma o café da manhã de pé em casa, numa comunidade à beira de águas poluídas, enquanto o marido João (Daniel Filho) sai do banheiro amarrando as calças. A casa não tem reboco, o banheiro é externo e os galos cantam lá fora. O locutor de rádio diz que são 5h da manhã. “Vai voltar que horas?”, pergunta o marido em tom hostil, levantando a voz. “Não interessa, eu ganho o meu, não tenho que dar satisfação”. Com essa apresentação, antes de inteirar cinco minutos de filme, está dado o tom da personagem: uma mulher que sobrevive a uma extenuante luta diária e que, se não leva desaforo da rua para casa, também não os leva da casa para a rua.
Romance da empregada tem roteiro de Naum Alves de Souza, a partir de inspiração em sua própria empregada doméstica, e foi desengavetado por Bruno Barreto que viu ali o potencial da narrativa, adaptando a trama de São Paulo para o Rio de Janeiro. O filme apresenta o dia a dia de Fausta, interpretada por Betty Faria em mais um trabalho da atriz com o cineasta Bruno Barreto. A parceria foi inaugurada em A estrela sobe (1974), segundo longa-metragem do precoce diretor, que tinha apenas 19 anos de idade.[1] No filme adaptado do romance de Marques Rebelo, Faria era Leniza Mayer, aspirante a cantora que morava na Saúde (como Carmen Miranda, possível inspiração do enredo) e driblava obstáculos e dificuldades para alcançar o estrelato. A trama tinha como ponto de partida as lembranças de Leniza, agora jurada de um show de calouros, revisitando sua trajetória ao se deparar com a apresentação de uma jovem talentosa, que a faz lembrar dela mesma quando moça. No passado, Leniza era uma vendedora de produtos farmacêuticos que trilhava seu caminho pelos estúdios de rádio, fazendo o necessário pelo sucesso, conscientemente seduzindo e se deixando seduzir em busca das melhores chances.
Tanto Fausta quanto Leniza são parte de uma linhagem de fortes personagens femininas no cinema de Bruno Barreto. Dona Flor, protagonista do seu maior sucesso e por muitos anos recorde de bilheteria no cinema brasileiro[2], as acompanha. São personagens firmes, ativas, resolutas, por vezes geniosas, que não se submetem facilmente – mesmo a hesitante Dona Flor acaba por desistir de despachar o fantasma de Vadinho para o mundo dos mortos e assume, feliz, a condição de ter dois maridos e dormir lado a lado com ambos na mesma cama. O triângulo amoroso entre uma mulher e dois homens culmina e toma sua forma máxima em Dona Flor, mas é comum aos três filmes dessa pequena constelação dentro da obra de Barreto (A estrela sobe, Dona Flor e seus dois maridos e Romance da empregada).
Leniza demonstra uma afeição mais genuína e desinteressada pelo personagem de João (Paulo César Pereio), mas oscila entre outros homens, em especial Mário Alves (Carlos Eduardo Dolabella), que lhe pode abrir caminhos na carreira musical. De forma semelhante, Fausta mora com o marido, que não lhe vale de muito, já que bêbado, inseguro e agressivo, mas se engraça com Zé da Placa (Brandão Filho), um senhor de certa idade que a corteja com presentes, afeto e a promessa de ajuda para comprar um terreno e construir uma tão sonhada casa. Em todos os três filmes, temos no centro a figura de uma mulher com agência, ora sentimental, mas no mais das vezes pragmática, e que pode escolher entre homens (ou manter mais de um). Em Romance da empregada, por certo tempo Fausta leva em paralelo os dois relacionamentos. No final, em situação de perigo com a enchente que lhe toma a casa, Fausta deixa para trás os dois – marido imprestável e amante moribundo –, e escala o telhado para salvar a si mesma.
O filme se encerra com esse belo e trágico plano final: a câmera aos poucos recua num movimento de travelling, afastando-se de Fausta, sozinha no alto da casa ilhada pela forte chuva. Os dois homens ficaram dentro do barraco, possivelmente submersos pelas águas sujas, e é Fausta que sobrevive (junto com umas poucas e espertas galinhas que ciscam ali pelas telhas), trajando um vestido de um ousado vermelho vivo. O gesto final é uma afirmação de sobrevivência, amor próprio e independência dessa mulher – o contrário da abnegação e submissão presentes em personagens femininas de tantos filmes. Antes ela do que eles.
(Plano final de "Romance da Empregada")
O receio por essa temida enchente é algo recorrente em distintos diálogos do filme, assim como o sonho de uma casa melhor do que o barraco fincado naquela zona de risco e enlameada. É na lama ao redor da casa que João, o marido, chafurda em um momento de crise, aos prantos e embriagado. O casal vive no Gramacho, Duque de Caxias, próximo de uma zona bem poluída da Baía de Guanabara. Em algumas cenas espalhadas pelo filme, como prenúncio da tempestade final, a chuva cai sobre os personagens. Por exemplo, na fila de entrada do planetário, Fausta de certo modo se sacrifica, oferecendo-se para aguardar na chuva enquanto Zé da Placa se abriga sob o guarda-sol de um sorveteiro. Uma pequena gentileza; já na cena final, caso de vida ou morte, é ela primeiro.
O elemento da água é temido por Fausta, visto como risco de enchente e da perda de tudo o que tem – e os bens materiais adquirem importância fundamental no filme, como signos de bem-estar e desejada ascensão social, como a cama nova que compra em muitas parcelas e o walkman que ostenta desfilando pelas ruas. Em outros momentos, a água é fonte de diversão. Além da visitação ao planetário, o domingo na Ilha de Paquetá é um momento de lazer quase idílico, que o filme pinta com cores mais vibrantes e saturadas. A direção de arte de Paulo Flaksman e o figurino de Rita Murtinho propõem uma festa cromática em elementos como maiôs, viseiras, caiaques, boias e apetrechos de praia das mais vivas tonalidades. A estética ali ressalta o caráter de exceção, em meio a uma rotina desgastante, e a pura alegria daquela sequência – quase como As férias do sr. Hulot (Jacques Tati, 1958) ou um especial do Chaves em Acapulco. As personagens se divertem com muitos sorrisos, mergulhos e gritinhos eufóricos, ao som de uma animada música latina de Rúben Blades. Uma das amigas até rola na areia feito bife à milanesa.
Na barca retornando para casa, as moças cantam, em coro, os versos sensuais de Cama e mesa, de Roberto Carlos: “Eu quero ser sua canção, eu quero ser seu tom / Me esfregar na sua boca, ser o seu batom / O sabonete que te alisa embaixo do chuveiro /A toalha que desliza no seu corpo inteiro / Todo homem que sabe o que quer / Saber dar e querer da mulher/ O melhor é fazer desse amor / O que come, o que bebe, o que dá e recebe”. Enquanto o grupo cantarola, feliz, a música romântica, a câmera se aproxima lentamente de Fausta, que tem o idoso Zé da Placa amparado nos ombros, tossindo asmático, revelando a fragilidade de sua saúde. Fausta começara a cena participando do canto, e a alegria de toda a sequência de Paquetá finaliza com seu semblante sério, preocupado, melancólico. O silêncio da personagem pode carregar uma possível avaliação das vantagens e desvantagens daquela relação.
(Diversão e final melancólico em Paquetá)
De volta à labuta. Fausta trabalha como empregada doméstica numa casa da zona sul em que a patroa, muito exigente (“Fausta, tem um sujinho aqui”, “Esfrega bem que eu tô vendo manchas”), a destrata. Mas ela não ouve calada e retruca a agressividade na mesma moeda: “Que raça!” e “Empregada é castigo” são respondidos com “Ficou nervosa? Quer ficar nervosa, fica”. É um toma lá dá cá de hostilidade em quase todas as relações, um tom sempre mais alto nos diálogos – e um estilo de atuação que segue esse estado geral de irritação verborrágica, ironia e bate-boca enfezadinho (como veríamos mais tarde nas comédias de Paulo Gustavo).
O elenco tem participação fundamental na criação desse universo, ainda que se deva criticar a quase inteira ausência de personagens/intérpretes negros, com exceção do ótimo ajudante mirim de Zé da Placa, não indicado nos créditos iniciais. O filme é recheado de participações especiais de figuras que já eram ou se tornariam famosas, como Zezé Polessa, Cláudia Jimenez, Cristina Pereira, Marcos Palmeira e Eri Johnson. Em entrevistas, o diretor conta que Daniel Filho teve a ideia de usar uma prótese para projetar seu maxilar para a frente e modificar seu modo de falar, deixando-o mais bronco. Destaca-se, é claro, a premiada Betty Faria (assim como sua sinergia com as atrizes que interpretam suas amigas). Bruno Barreto diz que não faz “cinema de autor”, mas “de ator” e um dos seus maiores interesses no cinema é a direção de elenco, como se nota também nos mencionados A estrela sobe e Dona Flor e seus dois maridos, além de muitos outros trabalhos ao longo de sua carreira.
Fausta está muito distante da figura tradicional da empregada silenciosa e comportada, coadjuvante uniformizada que apenas serve e transmite recados. Aqui ela é protagonista absoluta. Também não se encaixa exatamente no estereótipo da empregada corpo-mole, folgada e fofoqueira. Quando os patrões se ausentam, ela faz um show: experimenta os vestidos e camisolas da patroa, performa Sandra de Sá na sala fazendo da taça de cristal um microfone. Esse ato de subversão até aparece em outros filmes brasileiros (Tudo Bem e Cronicamente inviável, para citar alguns), mas em geral desempenhados por moças reprimidas, o que não é o caso da personagem de Betty Faria. Na verdade, o filme está mais interessado – e o título já aponta para isso – não exatamente no trabalho ou ofício, mas nas relações pessoais e amorosas, nas amizades, no lazer, nas agruras e nos sonhos dessa complexa personagem que é Fausta.
[1] Bruno Barreto estreou na direção de longa-metragem com Tati, a garota (1973), aos 17 anos.
[2] Dona Flor e seus dois maridos (1976) levou mais de 10 milhões de espectadores ao cinema e manteve o recorde por 34 anos, superado apenas por Tropa de Elite 2 (José Padilha) em 2010. A personagem de Leniza reaparece brevemente em Dona Flor e seus dois maridos (1976) quando Vadinho (José Wilker) leva Flor (Sônia Braga) a uma apresentação musical por ocasião de seu aniversário. Vestida e maquiada como uma verdadeira estrela, Betty Faria desfila pelo salão cantando “Somebody loves me, I wonder who, maybe it’s you”, apontando para Vadinho. Flor pergunta quem é aquela, ao que ele responde “é Leniza Mayer, uma cantora famosa no Rio de Janeiro”.
Este ensaio foi escrito por Mariana Souto, professora e curadora, para a obra "Romance da Empregada" (Bruno Barreto, Brasil, 1988), exibido durante a mostra "LC BARRETO: 60 anos filmando o Brasil".
Sobre a autora
Mariana Souto é Professora (e atualmente coordenadora) do curso de Audiovisual da Universidade de Brasília (FAC-UnB) e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da mesma universidade. Realizou pós-doutorado na ECA-USP. Doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, com período sanduíche na Universitat Pompeu Fabra (Barcelona) e mestre pela UFMG. Pesquisa cinema brasileiro, documentário, política, classes sociais, métodos comparatistas. Realizou palestras na Cinemateca Brasileira, CPF Sesc, CCBB. Foi curadora do Janela Internacional de Cinema de Recife, do Festival Internacional de curtas de BH, da mostra Corpo e cinema (Caixa cultural) e do Cineclube Comum. Foi júri oficial da Mostra de Cinema de Tiradentes, júri de curtas do Janela Internacional, júri da Crítica do Festival de Brasília e do Cinema Urbana. Diretora de arte do longa-metragem O Último Episódio (em finalização), do curta Quintal (André Novais, exibido em Cannes e premiado em diversos festivais), assistente de direção de Fantasmas (André Novais, premiado em diversos festivais internacionais), Quinze (Maurilio Martins), Dona Sônia (Gabriel Martins), assistente de montagem de No coração do mundo (exibido em Rotterdam e outros festivais), entre outros filmes. Autora do livro Infiltrados e invasores - uma perspectiva comparada sobre relações de classe no cinema brasileiro (2019).
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