Alphaville é mais realidade que ficção
- 1 de ago.
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por Pedro Rena
No final de suas História(s) do cinema (1998), Jean-Luc Godard fez uma citação de Jorge Luís Borges[1]. O cineasta franco-suíço assimilou sua figura à do escritor argentino que foi acometido pela cegueira nos últimos anos de vida. Ambos atravessaram a eternidade do cinema e da literatura no século XX como guardiões de toda a memória do que foi produzido nestas artes. Imaginem se eles atravessassem o Paraíso em um sonho, e tivessem recebido uma flor como prova de que estiveram lá. Ao despertar encontrassem essa flor em suas mãos... então o quê?[2] Não podemos esquecer que Borges inventou o personagem Funnes, o memorioso que tinha uma recordação completa de todos os acontecimentos que ele viu em sua vida. Imaginem, por exemplo, se Funnes fosse ao Cinema Paradiso e assistisse ao filme Luzes da cidade (1931), de Charles Chaplin. Pouco mais de uma década depois, Funnes se lembraria com perfeição de cada detalhe do chapéu-coco do personagem, de cada centímetro de sua bengalinha, de cada costura de seu paletó apertado, de cada fiapo de suas calças largas, de cada cadarço dos seus grandes sapatos... e se lembraria de cada pétala da flor que Carlitos, como em sonho acordado, colheu do chão para entregar à sua amada, no momento em que ela recuperou sua visão, depois de curar sua cegueira. Na década seguinte às Ficções (1944) de Borges, Godard já carregava consigo a memória do cinema clássico.
O jovem crítico fazia parte do grupo de cinéfilos que se tornariam cineastas no final da década de 1950, ao redor da revista Cahiers du Cinèma e da Cinemateca Francesa. Diante do repositório de formas disponíveis do cinema feito até então, e diante das convenções de gêneros sistematizadas até ali, o cineasta franco-suíço se propôs a tarefa de esboçar novamente o mundo, apropriando-se das histórias do cinema para reinventar a sétima arte. Os protocolos clássicos de representação foram parodiados, para que um cinema de invenção surgisse. Em Alphaville (1965), por exemplo, o gênero policial foi convocado para que Godard pudesse fazer experimentações com a luz e a sombra promovendo uma reflexão sobre a potência da poesia diante de uma cidade tenebrosa e totalitária. Logo no início do filme, uma citação de Borges: “pode ser que a realidade seja complexa demais para a transmissão oral. A lenda a recria sob uma forma que lhe permite correr o mundo”[3]. Sabe-se que o escritor argentino era um admirador do gênero policial, surgido em 1841, através da pena de Edgar Allan Poe. Segundo Borges, esse escritor norte-americano inventou o primeiro detetive, Charles Auguste Dupin. A investigação do mistério dos crimes da Rua Morgue era feita através das operações intelectuais do detetive, sendo uma metáfora da confecção de um poema moderno. Naqueles tempos, a escrita deixava de ser uma criação do espírito para tornar-se, como propõe Poe, uma composição mental[4]. Não era suficiente procurar os indícios do crime nas profundezas da cena (ou nas profundezas do real). A carta roubada estava na superfície da sala de estar, assim como nos filmes de Godard, em que não há nada por detrás da imagem: os elementos a serem percorridos pelo olhar-investigativo estão na planaridade mesma de cada quadro. É através da construção de um campo visual contrastado, em que o claro se infiltra no escuro, que Lemmy Caution (personagem de Eddie Constantine), persegue e destrói o supercomputador de Leornard Nosferatu (interpretado por Howard Vernon). E ele o faz propondo um enigma que, se desvendado, implodirá a máquina e a humanizará, tornando-a “meu semelhante, meu irmão”. Sim, os versos de Charles Baudelaire, que foi o tradutor de Poe para o francês, endereçados “ao leitor”, ou melhor, ao computador. O pensamento atravessa os filmes de Godard trazendo para a cena fílmica os enunciados da literatura. O sistema de Alphaville é racional e científico, aos seus habitantes faltam as palavras e seus respectivos sentimentos. O detetive que vem de fora, dos “países exteriores”, se infiltra por lá para salvar Natacha von Braun (personagem de Anna Karina) e desvendar o mistério através da poesia, operação intelectual, como vimos, mas que carrega consigo os sentimentos e as paixões, em meio à engenharia matemática da cidade. Poe, escrevendo da América do Norte, também criou um personagem estrangeiro (estranho à cidade e à polícia), habitante das ruas noturnas de Paris, para melhor percorrer as pistas dos crimes. A polícia, nos contos fantásticos de Poe, age também de forma matemática. Já o detetive detém uma capacidade analítica em que pensa-se se colocando no lugar do outro (daquele que cometeu o crime) para desvendar o enigma. É o gesto que Lemmy Caution opera, pensando como a máquina se implodiria, ao se tornar seu semelhante, seu irmão.
Alphaville é um filme “completamente ficcional” e é um filme “completamente documental”[5], como escreve Godard, nos rastros da modernidade trilhada por Rossellini[6]. É preciso da lenda para recriar a realidade. Uma ficção científica construída apenas com locações reais, sem cenários fabricados ou efeitos especiais. O labirinto fictício é figurado através do encontro da câmera com os lugares concretos. Trata-se de uma descoberta documental do enigmático mundo ficcional. Alphaville é uma película sobre a racionalidade urbana das periferias de Paris. De um filme para outro, a citação persiste, “meu semelhante, meu irmão”: em Duas ou três coisas que sei dela (1966), dentro de um café, nos subúrbios de Paris, a voz sussurrante em primeira pessoa de Godard expõe seu pensamento, compósito de citações de Baudelaire, Sartre, Wittgenstein, entre outros. Nesse filme, o movimento parece o inverso de Alphaville. Em vez de partir da ficção científica para chegar ao real, Godard parte de uma imagem prosaica de uma xícara de café para atingir uma reflexão sobre as galáxias. É justamente com o prosaico Ford Galaxy que Lemmy Caution percorre as estradas intersiderais. A construção visual neste filme parte das histórias policiais e de seu imaginário codificado para atingir uma abstração formal, operada pela imagem cinematográfica. É preciso, de alguma forma, ao contrário de Funnes, esquecer o fardo de passado para que algo de novo possa se inaugurar. “Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”, como lembrou o personagem de Borges.
No Brasil, a recepção crítica do filme de Godard foi elaborada, no calor do momento, por Glauber Rocha, para quem, “Alphaville é mais realidade que ficção”. “Por isto, quando Lemmy Caution revela ao Cérebro a ‘poesia’, o cérebro degringola, entorta os filamentos, enlouquece. Começa então, a revolução”[7]. A filmagem e a montagem de Terra em transe seguem, de fato, ritmos que nos remetem ao filme de Godard, demonstrando o impacto do cineasta da Nouvelle Vague no Cinema Novo brasileiro e, na mesma época, no Tropicalismo. Glauber escreve que Caetano Veloso fazia na música o que Godard fazia no cinema: misturas da cultura pop de massa (histórias em quadrinho; Bigitte Bardot) com a cultura erudita (Baudelaire; João Cabral). Há no cinema brasileiro contemporâneo um filme, chamado Girassol Vermelho, de Éder Santos, que nos remete outra vez ao filme Alphaville. Também sugerido pela literatura fantástica – não de Borges, mas de Murilo Rubião –, Romeu (interpretado por Chico Dias) percorre uma cidade desconhecida e misteriosa, fazendo perguntas incessantes, que logo são reprimidas (como acontece com Lemmy Caution): nessas cidades distópicas não se pode questionar nada, apenas seguir as ordens do sistema. Se Glauber Rocha retomou a ficção totalitária de Alphaville para interpelar a ditadura brasileira com sua alegórica Eldorado, Éder Santos rodou seu filme em pleno governo Temer. Mesclado à trama fantástica, notamos a citação de uma frase da nossa história recente: “não temos provas, mas temos convicção”. A ficção nesses filmes, seja ela científica ou não, é a matéria para que esses cineastas experimentem os limites da linguagem fílmica, sempre em contato enviesado e criativo com o real, revelando seus enigmar. “Pelo menos na ficção Lemmy Caution escapa com a mocinha,” Glauber Rocha, na sequência se pergunta: Escaparemos nós do terrorismo apenas com versos?”. Não temos provas, mas temos a ficção.
[1] Ver Araújo, Mateus. Jean-Luc Godard é a memória do cinema e A mise en scène do pensamento em Godard.
[2] Godard citando Borges citando Coleridge.
[3] Cf. Coutinho, Mário Alves. Escrever com uma câmera: a literatura cinematográfica de Godard.
[4] Cf. Borges, Jorge Luís. O conto policial.
[5] Cf. Godard, Jean-Luc. Introdução a uma verdadeira história do cinema.
[6] Cf. Bergala, Alain. Godard Rossellini.
[7] Rocha, Glauber. O século do cinema.
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