Partirei de uma ideia para escrever sobre o filme A Noiva da Cidade (1978) de Alex Viany. Tentarei mostrar os rastros, tudo aquilo que ficou como paisagem do filme.
Antes, porém, é necessário um contexto do Palácio das Artes e do Cine Humberto Mauro.
O Grande Teatro do Palácio das Artes foi fundado em 14 de março de 1971 com a apresentação de "O Messias", de Haendel.
No início dos anos 70 dentro do Palácio das Artes, um grupo se reunia e exibia filmes em Super 8 e 16mm. Inicialmente eram sessões fechadas, numa sala pequena, com caráter didático. A história do Cine Humberto Mauro começa antes mesmo de seu espaço físico existir. Em 1972, um grupo de amigos liberados por Wagner Araújo, recebeu de presente um projetor 16 milímetros. Como não havia um espaço disponível, o grupo começou a reunir no Centro de Informação e Documentação artística e Audiovisual (CIDAA). No início, o público das sessões não passava de 30 pessoas mal acomodadas no chão. Mas o público foi crescendo e, em 1974, as sessões passaram a acontecer no Grande Teatro. Somente em 1977, a sala conseguiu uma sede própria.
A Sala Humberto Mauro do Palácio das Artes foi inaugurada oficialmente em 15 de outubro de 1978 com o filme A Noiva da Cidade (1978), argumento e roteiro de Humberto Mauro, roteirizado por Alex Viany, Miguel Borges e dirigido por Alex Viany. A primeira programação da sala, que ficou em cartaz de 15 de outubro a 5 de novembro de 1978, apresentou uma retrospectiva de Humberto Mauro, com a apresentação de todos os seus longas-metragens e uma seleção de curtas, um festival de filmes da Cinédia e uma mostra de curtas brasileiros e mineiros daquele período.
Alex Viany (1918-1992) sempre foi um admirador de Mauro e se considerava “irmão mais moço ou filho mais velho”. Resolveu então, com outros amigos, aproveitar um argumento antigo de 1952 de Humberto Mauro (1897-1983) e recriá-lo com a poesia maureana, filmando em Volta Grande, Angustura e Cataguases (MG).
Segundo um depoimento de Humberto Mauro no livro: "Humberto Mauro: Sua Vida / Sua Arte / Sua Trajetória no Cinema", Editora Artenova, 1978 de Alex Viany:
A NOIVA DA CIDADE - "Tenho uma história na cabeça p'ra botar p'ra fora.
É a de uma moça do interior que vem p'ra cidade grande.
Volta desiludida mais tarde.
Todos os homens do lugar se apaixonam por ela.
É uma paixão coletiva.
Mas aí surge um episódio real muito pitoresco.
Calcule você que lá em Volta Grande tem uma cadeia que nunca prende ninguém.
P'ra prenderem alguma coisa... o pessoal da cadeira caça passarinho.
Pois ocorreu um fato curioso.
Um dia prenderam um sujeito que tinha roubado uma ferradura ou coisa que o valha.
A cidade inteira desandou a mandar coisas p'ro homem: comida, café, dinheiro, cigarro, o diabo.
O meu primo, que era o delegado, resolveu deixar a porta da cadeira aberta p'ro homem fugir, mas este protestou: "Não saio, não senhor.
Estou esperando o café."
Pois este episódio autêntico eu aproveito no filme." "A fita tem coisas curiosas como a daquela pessoa assobiando, às três da manhã, o vizinho ouve o assobio e faz coro e daí a pouco está a cidade inteira assobiando o mesmo motivo."
("Me dá um cigarro aí, escondido, pelo amor de Deus.")
Desses vestígios surge uma história bem simples, uma atriz de sucesso internacional, inicialmente Lúcia depois Daniela, volta a Catavento, sua cidade natal, para recolocar em ordem emoções e ideias abaladas pela fama. Desce em um pasto com um teco-teco e tem um encontro com Beto, um cantor de sucesso, que voltou recentemente para a cidade. Dois artistas de fama e que buscam sossego no campo.
Entretanto, toda a cidade lhe rende homenagens e todos querem aproveitar de sua fama para uso político. Do cuidado com a natureza até o desenvolvimento industrial e a chegada do progresso.
Mas Daniela decide mesmo ficar no sítio de Beto, o que é entendido como sequestro. Beto acaba preso em uma cadeia, que não existia de fato por falta de verbas, o que cria uma sequência de inusitados absurdos com todas as mulheres da cidade levando comida para o prisioneiro.
Um vestígio curioso daquilo que poderia ter sido é a informação que o elenco original seria Dina Saft como Daniela e Chico Buarque como Beto, segundo Betina Viany, filha do diretor, que fez o papel de Lindalva. Mauro contava sempre como piada que teria convidado Gary Cooper e Brigitte Bardot para o elenco principal. Mas foram substituídos por Elke Maravilha (1945-2016) no papel principal, ficou três meses no local e Jorge Gomes.
O primeiro vestígio do tempo aparece no processo de restauração desta obra. Já início uma cartela apresenta o filme como recuperado a partir de uma única cópia em betacam localizado no MAM RJ, foi digitalizado em 2012 pelo CTAV em parceria com o Museu de História e Ciências Naturais e contemplado na sétima edição do programa Filme em Minas da Secretaria Estadual de Estado da Cultura, em projeto do historiador André Martins Borges.
O filme é apresentado como um filme para Humberto Mauro realizado por seus amigos: Alex Viany, Carlos Del Pino, Célio Gonçalves, Chico Buarque de Holanda, David Neves, Francis Hime, Manfredo Caldas, Miguel Borges e Walter Goulart.
Um vestígio determinante é a cachoeira, que aparece várias vezes e é um signo fundamental no filme. O banho de Daniela nua, observado pelo menino e pelo pai, no mote de Humberto Mauro: “o cinema nada mais é do que cachoeira. Deve ter dinamismo, beleza, continuidade eterna” e complementa: “Quando vejo uma cachoeira, não vou de cara em cima dela. Escondo-me atrás de uma bananeira, esperando a hora certa. Há momentos na natureza que não se repetem nunca mais. (...) Natureza a gente não deve filmar quando a gente quer, mas na hora que a natureza escolhe” in VIANNY, A (Org) Obra citada.
Um vestígio do erotismo aparece na sequência da noiva em idílio amoroso com o vento. Essa sequência foi dirigida por Humberto Mauro e lembra muito seus filmes anteriores.
Inúmeros vestígios de filmes de Mauro. A Velha a Fiar (1964) aparece por três vezes: a primeira, aos 17:40 quando Beto leva Daniela para a cidade, depois em 43:20 quando Beto e Daniela passeiam de carroça e em 1:19:52, é uma referência clara para marcar a ideia de campo /cidade e a chegada do progresso e deixa seu Carro de Boi (1974) desfilar como resistência e quando Daniela e Beto saem para tomar um caldo de cana lembra muito Engenhos e Usinas (1955). E na assembleia são declamados Meus Oito Anos (1955).
Os vestígios musicais marcam toda a ideia do filme e se foi pensado assim pois seria o próprio Chico Buarque, o Beto. Seu sobrenome soa e ressoa em Beto Duarte. Um adendo de vestígio biográfico coloca Chico Buarque morando em Cataguases em 1959, no internato e um galã, como Humberto Mauro vislumbrara, portanto, seria bem lógico. Existem indícios especulativos que a Banda (1966) teria ali sua inspiração.
E por fim, um vestígio sonoro foi conservado em fita que Lindalva toca, ouve-se falar do seu time preferido, o Fluminense. Segundo Chico Buarque, ele não aceitou o papel, mas a pedido de Alex Viany, fez a trilha sonora, juntamente com Francis Hime. A primeira música Passaredo lembra a infância de Daniela, quando ela pergunta a Beto de qual passarinho era o som ouvido e tem muito, sobretudo da primeira fase, a ver com o universo maureano: lírico e um tanto ingênuo. E fecha o filme com a música Quadrilha, segundo Chico Buarque, uma “brincadeira séria” anima uma festa típica de interior.
E o vestígio de Elke Maravilha talvez seja verdadeiro: “Não é um filme complicado, intelectual, mas é sofisticado na medida que o simples é sofisticado. É um filme gostoso”. E finalmente, um vestígio para o futuro, de filme quase perdido, pouco exibido, sem fortuna crítica, que agora poderá ser apreciado e permanecerá para todos os envolvidos como uma experiência, senão única, proveitosa.
P.s. Um vestígio trágico mais que anunciado. A Cinemateca nasceu de lutas cineclubistas a partir de 1940 teve um outro ilustre estudioso e amigo de Humberto Mauro, Paulo Emílio Sales Gomes como idealizador. Aconteceu um incêndio em 28 de janeiro de 1957; um segundo em 18 de fevereiro de 1969; um terceiro em 06 de novembro de 1982; o quarto em 03 de fevereiro de 2016 e agora, 29 de julho de 2021, o quinto. É bem difícil ergue uma nação em imagens com essas chamas do descaso e estupidez de governantes.
Este texto crítico foi escrito por Ataídes Braga, professor e pesquisador, para a obra "A Noiva da Cidade" (Alex Vianny, Brasil, 1978), durante a mostra de cinema brasileiro "Exagerados: Cinema contra o Baixo-astral" exibida de 9 a 29 de setembro de 2021, em formato on-line. O texto é agora republicado, em formato definitivo, durante as ações de comemoração do Dia do Cinema Brasileiro.
Sobre o autor
Ataídes Braga é graduado em História pela UFOP e mestre em cinema pela UFMG. Ator, roteirista, produtor, professor e pesquisador de cinema. Membro do Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais e do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro. Autor dos livros O fim das coisas - As salas de cinema de Belo Horizonte, Fragmentos de versos, Cachoeira de filmes e Romance em cinco linhas. É Diretor e Produtor da Empresa Artesãos Tagarelas.
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