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Sentir o invisível

Altar (Carol Fonseca, 2024) é um filme composto por estrutura relativamente simples. Não falo isso em demérito ao filme ou nem nada nesse sentido, mas busco exaltar sua qualidade estilística em retratar as três senhoras identificadas nos créditos finais como Tia Ni, Tia Tonha e Valdete. Em suma, o curta comporta dois regimes de imagem. Num primeiro momento, primeiríssimos planos dão a ver partes do corpo dessas mulheres que são isoladas do restante, sobretudo suas bocas, enquanto recitam uma reza que preenche a banda sonora. Num segundo, planos médios e em câmera fixa de objetos e roupas dessas senhoras, imagens pessoais de arquivo e o altar que nomeia o filme preenchem a mise-èn-scene que se assemelham a fotografias e pinturas. As imagens se alternam sem relação direta aos sons diegéticos e extra-diegéticos, criando um ritual ao redor a partir desse conjunto de vozes. As vozes se intensificam e à medida que são adicionadas novas camadas de som, os planos se tornam cada vez mais fechados.


Há uma curiosa relação entre tais ordens de registro, entre os planos médios e os fechados. Ao passo que as imagens hiperfechadas não mostram essas mulheres por inteiro, descaracterizando as emissoras da reza do restante do seu corpo, planos médios preenchem essa suposta descaracterização para o espectador com pertences pessoais de cada uma delas, ainda que não identificados. Um óculos de grau, uma camisa de botão, um terço, um guarda-chuva e outros objetos compõem a mise-en-scène de planos que se assemelham a um mostruário de cada uma dessas vozes. A montagem, por sua vez, opera como uma costura, como algo que encaixa os fragmentos dos objetos cênicos, partes do corpo e reza, criando um retrato dessas senhoras.


Nesses “planos mostruários”, em que a câmera se fixa para observar os objetos ali expostos, é possível ver uma brisa cruzar o plano de um lado para o outro, “sentir” seu movimento. O vento, que na Bíblia é apresentado como uma manifestação do Espírito de Deus, move a folhagem das árvores, as fotos e roupas penduradas no varal, como se aquela reza fosse aceita pelos céus e o Espírito se materializasse em forma de sopro, passagem. Altar, portanto, opera na dimensão de um retrato não apenas Tia Ni, Tia Tonha e Valdete, mas também em modo de criar uma mise-èn-scene para que essa prece seja aceita aos céus. Expor objetos pessoais é a oferta de quem reza e o vento é sua concretização.

 

Este texto crítico foi escrito por Renan Eduardo, crítico e pesquisador, para a obra "Altar" (Carol Fonseca, Brasil, 2024), exibido em 23 de fevereiro de 2024, na programação do Prêmio Humberto Mauro.

 

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