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Mitos sobre o início-fim e ficções do Brasil

Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.


Anos 80.


Boca do Lixo.


A cena cinematográfica feita na Boca havia sofrido um enorme abalo devido ao contexto do país e, principalmente, a entrada dos filmes de "sexo explícito" estrangeiro. Reagindo a isso, temos uma quebra no ciclo de produção estabelecido pelas pornochanchadas, fazendo com que os realizadores tentem resistir ao produto exterior com filmes pornos hardcore e algumas (poucas) películas marginais, onde temos uma forte presença de escatologia, de nostalgia e da antropofagia oswaldiana até o mais elevado nível.


Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.


Dentre essas produções temos a saudosa imundice de As Bellas das Billings, um filme-homenagem e carta de despedida de Ozualdo Candeias para sua amada Boca do Lixo.


Um caminhão de lixo inaugura a trama nos levando a Rua do Triunfo (rua marco da produção da Boca) onde conhecemos os protagonistas Jaime e o violeiro. Os mais novos amigos perambulam pelas ruas da Boca imersos em uma atmosfera nostálgica: passam pelo Bar Soberano, onde vemos figuras fundamentais desse cinema como Carlão, Jairo Ferreira e o próprio Candeias - em câmera lenta -, bebendo uma cerveja e conversando com os rostos bem próximos uns dos outros, como uma dança muito delicada onde aqueles homens quase se beijam ao conversarem sobre filmes. Eles entram em um prostíbulo, no qual uma Prostituta mais velha dança, clamando por afeto, ao som de Faz um ano, enquanto outras prostitutas a observam com pena e comentam como ela não percebeu que seu tempo passou. Os amigos decidem ir para o interior visitar os familiares de Jaime, que moram à margem da represa Billings e têm como principal fonte de alimentos os restos de lixo dos restaurantes da cidade.


Todo o filme parece ecoar, em cada cena, pequenas homenagens à época áurea da nossa Hollywood-Esculacho Brasileira. Candeias, de forma particular e genial, tem o dom de construir cenas grotescas e escatológicas da maneira mais sensível e afetuosa possível. Um modo ímpar do diretor em fazer um filme quase maneirista (movimento muito presente no cinema mundial nos anos 80), usando como principal matéria seus próprios filmes e produções de um passado bem recente, que estava aos poucos se extinguindo.


A transformação permanente do Tabu em totem.


Enquanto isso, os filmes Tabu (1982), de Júlio Bressane e Um filme 100% Brasileiro (1985), de José Sette vão encontrar na antropofagia e na mitologia sua alternativa para o cinema naquele momento.

Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.


Ambos os filme possuem uma estrutura caótica e muito similar: os personagens eruditos e boêmios perambulam pela cidade, observando esse Brasil mitológico, bem como "para gringo ver": o ideal de um país tropical, com muita mistura racial e cultural, compartilhando a visão mais estereotipada e preconceituosa dos povos originários e afrodescendentes e, ainda, apresentando o carnaval nas cidades com paisagens exuberantes e um calor infernal, repleto de mulheres seminuas e uma grande liberdade sexual. Eis o Brasil.


Perante a isso, os personagens pensam e criam grandes monólogos sobre a situação político-econômica do país sem futuro, buscando Deus a cada esquina e encontrando o Diabo toda vez.


O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo.


Tabu, de alguma forma, possui uma abordagem mais histórica, constrói essa mitologia a partir de imaginários presentes em músicas, poemas e outras produções artísticas e narra uma fábula com personagens culturalmente relevantes, como Lamartine Babo (Caetano Veloso), Oswald de Andrade (Colé Santana), João do Rio (José Lewgoy), Isadora Duncan (Cláudia O'Reilly) Manuel Bandeira, Maria Monteiro, etc..


Com isso, ele costura, com presença marcante de marchinhas de carnaval, a trama desse encontro histórico-ficcional nesse Rio atravessado pelo frenesi carnavalesco, compondo a narrativa com imagens de arquivo do original Tabu (1930), de Murnau e cenas de filmes pornos antigos. Bressane parece refletir o tempo todo sobre as imagens, escancarando-as e criando uma narrativa não pelas falas ou pela sequência de acontecimentos, mas pelo encontro e fricção que as imagens produzem simplesmente ao tocarem uma à outra. O foco aqui não é a criação de um sentido a partir da junção das imagens, mas apenas a contemplação de cada imagem só e junto a outras. Podemos perceber isso no início do filme onde a introdução se dá pelas imagens da claquete do filme, feita pelas mãos, quase como um símbolo do Cinema Marginal; ou pela duração das cenas, o tempo que ele as delonga e contempla (sendo o plano de uma bunda através do movimento do vento em um tecido ou dos personagens olhando para as coisas).


É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus.


Um filme, mesmo com a atmosfera e alguns elementos em comum ao Tabu, como o fato de usar uma figura histórica (o poeta francês Blaise Cendrars) numa fábula pelo Brasil carnavalesco, ou utilizar imagens de arquivo (nesse caso, imagens mais recentes e documentais), busca trabalhar as imagens e a trama com uma proposta bem diferente.


O filme recria o descobrimento do Brasil, misturando várias épocas diferentes e criando uma mitologia carregada de estereótipos preconceituosos e racistas. Sempre permeado sobre o olhar exterior do nosso protagonista gringo, que é extremamente verborragico e busca incessantemente entender como tornou-se possível esse fenômeno Brasil, essa energia caotica sagrada e profana. Além disso, o Diabo acompanha toda a trama, pontuando sua presença em cenários febris e delirantes, em pontos turísticos e comentando sobre a criação desse inferno. O reforço dos imaginários externos sobre o Brasil parece construir um filme de propaganda.


Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia.


Também trabalhando com delírios e o Diabo, Filme Demência (1986), do nosso amado Carlão, reencena a Lenda de Fausto (grande símbolo da modernidade), de Goethe, adaptando-o para o contemporâneo e para realidade brasileira: Fausto é um Industrial falido e quase divorciado que, certa noite, após um surto de desilusão e angústia, sai armado perambulando a noite pela cidade, em busca da praia que vê em seus sonhos e ilusões com uma figura infantil e pura. Nesse percurso, Fausto se perde em lugares alucinantes e espetaculares, como um bar onde o poeta Claudio Jorge Willer comenta sua obra, entra em cinemas de rua, vai em um seminário acadêmico sobre simbologia e pega a estrada em busca do seu Paraíso. No caminho, Fausto encontra com prostitutas, conhecidos, ciganas que leem seu futuro, o próprio Carlão que o passa uma mensagem cósmica em meio a um banheiro de beira de estrada, uma velha misteriosa, um homem que procura o cigarro que sua Indústria fabricava e outras figuras que podem ser ou não a diabólica figura de Mefistófeles, o demônio transmorfo que busca seduzi-lo constantemente.


Nessa obra, Carlão entra na distopia neon, como uma resposta ao que foi perdido ao longo dos últimos anos, criando esse cinema distorcido dos anos oitenta.


A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.


Ainda trabalhando essas ficções de Brasil criadas pelo olhar exterior ou não, temos em O Homem que virou Suco (1981), de João Batista de Andrade, uma das nossas maiores invenções nacionais: o Nordeste Ficção.


“Pensar a região como uma entidade é perpetuar uma identidade forjada por uma dada dominação. Devemos pensá-la, sim, como uma construção histórica em que se cruzaram diversas temporalidades e espacialidades, cujos mais variados elementos culturais, desde eruditos a populares, foram domados por meio das categorias da identidade, como: memória, caráter, alma, espírito, essência. O Nordeste, na verdade, está em toda parte desta região, do país, e em lugar nenhum, porque ele é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como característicos do ser nordestino e do Nordeste. Estereótipos que são operativos, positivos, que instituem uma verdade que se impõe de tal forma, que oblitera a multiplicidade das imagens e das falas regionais, em nome de um feixe limitado das imagens e das falas-clichês, que são repetidas ad nauseum, seja pelos meios de comunicação, pelas artes, seja pelos próprios habitantes de outras áreas do país e da própria região”. [1]


No filme acompanhamos a trama de Deraldo, um poeta popular cearense que se muda para São Paulo e é confundido com Severino, um operário, também nordestino que matou o patrão. Deraldo começa a fugir e perambula pela cidade de emprego a emprego se confrontando com as agressões da vida operária e os preconceitos com nordestinos e todos os estereótipos esperados do Nordeste que se revelam no Sudeste.


O Homem que virou suco, apresenta toda essa ficção nordestina esperada e projetada com sutis camadas ao longo de todo filme, a começar pelo estereótipo do nordestino preguiçoso, pelo simples fato de Deraldo buscar um caminho de trabalho mais artístico e poético ao invés de "pegar no batente", como é esperado e cobrado dele todo o tempo por figuras opressoras ou mesmo colegas de trabalho e vizinhos. O filme segue exprimindo a construção social de que "nordestino é tudo igual", revelada no próprio conflito gerador do filme, que o torna um fugitivo. Ao decorrer da trama, começamos a acessar outras camadas desses preconceitos e como o jogo de forças "opressor e oprimido" vai oscilando de maneira muito sutil, pois opera de formas diferentes a depender da classe social, raça, prestígio intelectual e contexto. É possível perceber essas inconstâncias em cenas como o show de Dominguinhos, que vai ressaltar os estereótipos esperados de um cantor nordestino com toda a indumentária "típica", com direito a roupa de cangaceiro e cenário de chita; ou na cena em que percebemos um grande diferença no tratamento entre um Coronel da Paraíba e Deraldo (que na cena, trabalha na casa de uma figura política importante). O diretor ainda fomenta essa questão, quando Deraldo, trabalhando em uma grande empresa, responsável pelas obras do metrô, assiste um vídeo institucional que representa o nordestino "bronco" de forma extremamente rude e xenofóbica. A cena fricciona as imagens do vídeo com planos dos rostos dos operários e nordestinos o assistindo e todo o desconforto que começa a se estabelecer ali.


Além disso, o filme é um dos únicos dentre essa seleção que vai trabalhar e articular mais sobre a classe operária, escancarando plano a plano a lógica das estruturas de poder e se opondo contra elas, como na cena em que vemos a brutalidade da luz da polícia na cara de moradores de um bairro periférico a procura de Deraldo, ou ao filmar de forma extremamente sensível os rostos dos operários analfabetos quando Deraldo lê a carta da namorada de um deles, contanto sobre a situação do interior e o desejo de ir para capital em busca de uma condição melhor. Inclusive, a própria figura de Deraldo apresenta-se o tempo todo como um símbolo de resistência e enfrentamento, seja por facear essas estruturas a se negar aceitar uma série de abusos trabalhistas, ou por não entrar na lógica capitalista e persistir em seu sonho de ser poeta, reforçando isso sempre que perguntam o que ele faz ou o chamam de vagabundo, subalterno, etc.


As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.


A meu ver, todos esses filmes parecem reagir ao fim, ao niilismo, maneirismo e destroços do cinema no anos 80, buscando rever e repensar mitológicas possíveis naquele momento do Brasil. Revistando esses movimentos, combatendo, distorcendo e os escancarando, quase que em um gesto de perguntar: para além desses, quais são os mitos possíveis depois do fim?!


A alegria é a prova dos nove.[2]

 

[1] trecho do livro A invenção do nordeste e outras artes, de Durval Muniz, usado na capa do álbum Nordeste Ficção, de Juliana Linhares.


[2] trechos do Manifesto do Antropófago, de Oswald de Andrade

 

Este texto crítico foi escrito por Maria Trika, cineasta, crítica e pesquisadora, sobre as obras "O Homem que Virou Suco" (João Batista de Andrade, Brasil, 1981), "Tabu" (Julio Bressane, Brasil, 1982), "Um Filme 100% Brazileiro" (José Sette, Brasil, 1985), "Filme Demência" (Carlos Reichenbach, Brasil, 1986) e "As Bellas da Billings" (Ozualdo Candeias, Brasil, 1987), durante a mostra de cinema brasileiro "Exagerados: Cinema contra o Baixo-astral" exibida de 9 a 29 de setembro de 2021, em formato on-line. O texto é agora republicado, em formato definitivo, durante as ações de comemoração do Dia do Cinema Brasileiro.

 

Sobre a autora

Maria Trika é cineasta, artista plástica, atriz, curadora e crítica de Cinema. Já realizou diversos filmes, video artes, exposições, performances e filmes instalativos como diretora, roteirista, atriz e diretora de arte. Por muito tempo escreveu para as revistas de cinema Rocinante e Cinética e possui diversos textos críticos e poéticos publicados em revistas online e físicas, catálogos de mostras e festivais e livros. Maria também é fundadora da produtora The Boche Filmes e realiza, desde 2015, trabalhos como pesquisadora, arte educadora e curadora.



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