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Filha de Iansã, só poderia me erguer diante dos ventos e tempestades

Eis que diante de cada manhã, de cada alvorecer, ainda restam diversos lugares no mundo nos quais podemos ouvir os galos cantarem. Saudação ao sol ou aos amanheceres, fato é que este animal, impreterivelmente, ergue seu peito convocando a luz dos dias vindouros. Galo vai, Galo vem, há sempre um dia após o outro.


Certa vez, em uma mesa de bar, ouvi uma pessoa dizer que nosso ato de torcer no futebol, guarda sempre algo de imensa autoimportância. Não me recordo se reagia a uma fala minha ou de mais gente, mas fato é que durante a campanha de 2013 do Atlético Mineiro na Copa Libertadores, fechei meus olhos em todos os lances perigosos. Deu certo uma, duas, três vezes, e logo passei a acreditar que este ato parecia fornecer certa energia cósmica ao time. E assim o fiz, até o pênalti errado que nos concedeu a vitória.


Quando chamada para escrever este texto, perguntei: “posso fazê-lo em primeira pessoa? Acho que não consigo uma escrita distanciada, quando se trata do Galo”.


Hoje, eu e meu filho de oito anos, seguramos um boneco do Hulk (o super-herói), toda vez que seu homônimo ou seus comparsas avançam com a bola. Demos a ele o nome de ‘egrégora’.


Não ousarei dizer que se trata de comportamento isolado, ou mesmo apenas com torcedores do Atlético Mineiro, mas fato é que há algo nessa torcida que mobiliza a fé, mesmo que se trate de seus fiéis mais agnósticos.


Meu pai, um alemão torcedor do Bayern de Munique, pousou nessa terra há cerca de 44 anos. Convidado por um cunhado cruzeirense, foi ao Mineirão em meados dos anos 1980 assistir aos rivais. Cresci ouvindo a história. Eis que o gringo assistiu à Charanga do Galo de frente. Viu o flamular das bandeiras, os gritos de “Galo” e ao final da partida disse: “eu vai ficar do outro lado”. Em 2012, quando partiu abruptamente após breve batalha contra o câncer, Josef foi enterrado com uma imensa bandeira atleticana cobrindo seu caixão.


Por essas e outras, peço licença, mas falar do Galo é falar de mim, do meu peito, da minha carne, da resiliência que me constitui. E sei que ao falar disso, também evoco vocês, torcedoras e torcedores, pois nem o vento nos segura. Quando gritamos “Galo”, é acerteza do dia seguinte que nos torna únicos. Faça sol, faça chuva, nascemos e morreremos atleticanas e atleticanos.


Há algo em Lutar, lutar, lutar (Sérgio Borges e Helvécio Marins Jr., 2021) que gostaria de tomar como ponto de partida. A escolha pela estrutura anacrônica. Pode-se aferir uma série de razões para tal, mas uma me parece ascender: ao percorrermos a história do Clube Atlético Mineiro, nos deparamos com a recorrência de diversos fatores. A injustiça, deflagrada nos espasmódicos cartões vermelhos de um José Roberto Wright aliado ao que há de mais perverso no futebol; as raízes, do “time de preto, de favelado, mas quando joga o Mineirão fica lotado”; uma mulher à frente de seu tempo; e sua inviolável torcida.


Não importam as décadas, Deus, no caso do futebol, responde a um universo politeísta. Há um Deus (ou Deusa) para cada camisa. E o nosso, posso afirmar de carteirinha, escolheu muito bem aqueles e aquelas que Nele iriam e irão crer. Deus Galo, com D e G maiúsculos, oferece de tempos em tempos eflúvios de fé, catarse e gols. Mas sabe que assim como dizem que a arte imita a vida, o futebol arte tateia, como o nascer do sol, a única utopia possível. Torcer é acreditar no aleatório, no acaso, na sorte, nas reviravoltas.


Amar um time é diferente de ser apaixonado. Cresci ouvindo piadas com “as frangas”, vendo o Cruzeiro colecionar troféus e ao longo do tempo, percebi que o amor ao Galo, como Kalil brada no filme, não diz respeito somente a vitórias. “Não somos time de taça. Somos time de honra, de sangue, de camisa”. Essa para mim é a diferença central entre amar e ser apaixonado(a) por um time de futebol. Quando seu trunfo são troféus, é bem possível se tratar de uma paixão condicional.


Carol Leandro, narradora, torcedora, mulher preta muito bem escolhida para nos conduzir nessa jornada 1908-2013, ou mesmo 1981-1908-1967-1977-1950-1980-2013... faz parte do coletivo feminista Grupa, surgido como reação ao lançamento do uniforme de 2016, com mulheres de biquíni. É um alento ouvir sua voz nos guiando, mas aguardo, quem sabe, um Vencer, vencer, vencer, para narrar o inacreditável ano de 2021 para o Atlético, com membros das torcidas femininas mais presentes nos depoimentos.


Diante dos saltos atemporais que o filme dá, vemos diferenças culturais, estéticas, políticas, narradoras - entre a alcunha “pelota”, o refrigerante Guarapan e o VAR, as steady-cams que hoje registram jogos como se estivéssemos dentro de um videogame, há uma mesma massa, bradando aos quatro cantos que seja contra ou a favor do vento, Galo é Galo e vice-versa.


Apesar do clichê religioso, sinto ser importante afirmar também, que nosso preto e branco guarda algo além da fé inabalável e do amor indestrutível. A percepção da opacidade do mundo, de seu viés de quebras de expectativa, das mortes tantas, das travessias mercadológicas, das brigas de torcida, da insensatez que vemos hoje em dia nos “VARes” da vida, na recusa ao que a imagem dos lances revela, nas apostas, nos lados B.


Futebol é cria do mundo, e este mundo, tem deixado um tanto a desejar. As contratações de Cuca, recentemente negado no Corinthians, e a ambiguidade de sua presença tão vencedora no Atlético. Algo a se pensar, nesse universo de reticências que a realidade sempre ousa nos escancarar.


Preto e branco, yin e yang. Escuridão e claridade, dia e noite. Ainda bem que nossas cores representam as forças opostas e a necessidade de buscarmos o equilíbrio. Que possamos falar e refletir o futebol em todas as instâncias que ocupa. Problematizando seus poréns, mas não deixando de glorificar sua magia.


Do punho erguido de Reinaldo contra a Ditadura Militar, ao soco no peito de “aqui é Galo, porra”, de Ronaldinho Gaúcho, Lutar, lutar, lutar é um convite explícito ao louvor preto e branco. A mil filmes possíveis, a temas intermináveis. O filme, apesar de extremamente acurado em sua pesquisa e arsenal imagético, não deixa de afirmar que a trajetória do Clube Atlético Mineiro vibra em uníssono devido a quem ocupa as arquibancadas – ontem e hoje. Forte, vingador, campeão do gelo, a gente nunca vai deixar de acreditar.


Que venham novas narrativas, que o futebol percorra este e outros tempos.


Eparrei Oyá.

 

Este texto crítico foi escrito por Ursula Rösele, professora e produtora, para a obra "Lutar, Lutar, Lutar" (Sérgio Borges & Helvécio Marins Jr., Brasil, 2021), exibido em 24 de agosto de 2023, na faixa de programação Cinema Mineiro em Cartaz.

 

Sobre a autora

Ursula Rösele é Doutora em Cinema (Belas Artes/UFMG) e Mestre em Comunicação (FAFICH-UFMG). Foi crítica de cinema pela Revista Eletrônica Filmes Polvo – cobriu diversos eventos de cinema, dentre eles as mostras de Tiradentes, Ouro Preto, Forumdoc.bh e o Festival de Cannes (2007-2013). Foi membro da comissão de seleção da Competitiva Brasileira do Forumdoc.bh em 2010, membro do Júri da Competitiva Brasileira do FestcurtasBH em 2011, e comissão de seleção das Competitivas Brasileira e Internacional do FestcurtasBH em 2012, 2013 e 2014. Trabalhou como assessora da Gerência de Cinema da Fundação Clóvis Salgado (BH/MG) entre os anos de 2011 e 2013. Trabalha com produção cultural, tradução e legendagem. Compôs a coordenação do Lumiar Festival Interamericano de Cinema Universitário (2014, 2016, 2017) e a curadoria do festival (2018). Atuou como docente no Centro Universitário UNA (Graduação) de 2013 a 2020. É escritora e cineasta.


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