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RIO VERMELHO

por José Ricardo Miranda Júnior

O sol esta se pondo no Oeste

O gado desce para o riacho

O sabiá se acomoda no ninho

É hora do cowboy sonhar

Luz púrpura nos cânions

É lá que eu desejo estar

Com meus três bons companheiros:

Meu rifle, meu cavalo e eu...[1]

Já conhecemos essa cena:


Ao longe vemos uma longa fila de minúsculas figuras humanas atravessando inóspitas planícies. Homens com grandes chapéus em cima de cavalos, mulheres com longos vestidos flutuantes ao vento. Os olhos sempre no horizonte. Ao fundo, no panorama, grandes rochas gerando uma sensação simultânea de magnitude, espetáculo e ameaça. Eis convertido em imagem o conflito mais básico do universo do far west – personagens habitando espaços desérticos, em confronto com o espaço ao redor, que desafia sua a sobrevivência ou mesmo existência dos exploradores e aventureiros do este e, que aflora nesses personagens o que há de mais “nobre” e “perverso” em suas paisagens interiores.


Essa dualidade das forças da natureza X engenharia e o “espírito empreendedor humano” atravessa a história dos westerns, de John Ford à Kevin Costner e John Hillcoat. Essas narrativas sempre foram povoadas por personagens engenhosos, obstinados e sua necessidade de expansão (e dominação) do ambiente - o homem versus a natureza e seus elementos[2]. Outro ponto geralmente abordado é o do conflito interno gerado no processo “civilizatório” – o homem versus o próprio homem e suas leis.


“Rio Vermelho” (Red River, EUA, 1948) o célebre filme de Howard Hawks se enquadra nesses dois temas – homens em conflito consigo mesmo e com seu meio ambiente. Dois desafios. Conflitos dentro de conflitos, ou, mais precisamente, um conflito que se estende em outro. Hawks revisita quase toda iconografia do universo faroeste até então, dos figurinos aos temas - a terra sem lei, o processo civilizatório, a ferrovia, os cowboys e seus cavalos, romances, duelos, longas travessias, a brutalidade do estilo de vida dos pioneiros mesclada ao impacto e encanto dos espaços abertos e suas paisagens. Um espaço para se perder e se encontrar.


Red River e o estilo Hawks


Em 1946, ano em que o filme foi rodado nas impressionantes paisagens do Arizona, encontramos o já veterano Howard Hawks no primeiro western totalmente dirigido por ele. Embora já fosse um veterano no cinema, Hawks não era ainda conhecido como um diretor de faroestes, um universo cinematográfico no qual ele se tornaria referência inclusive, mais tarde, gerando o seu próprio “modelo” de faroeste com “Onde começa o inferno” (Rio Bravo, EUA, 1959).


Em “Rio Vermelho” ele toma como ponto de partida a mitologia, iconografia e o universo de outro colega de profissão e amigo – John Ford. No entanto, embora a “maquinaria” do filme parta do universo fordiano, o filme não poderia ser mais hawksiano. Os ambientes e sua magnitude vão gradualmente dando lugar às relações e o conflito humano entre figuras masculinas que se admiram, respeitam e se amam. Figuras que questionam a natureza hierárquica das suas relações (algo quase impensável em um filme de Ford). Trata-se de um “melodrama masculino” nos moldes de “Paraíso Infernal” (Only Angels Have Wings, EUA), outra obra prima de Hawks de 1939. As estruturas das relações masculinas já precedem inclusive “Onde começa o inferno”, em especial nas relações entre gerações (estruturas quase familiares com avôs, pais e filhos simbólicos) e na relação de camaradagem e profissionalismo entre os homens em suas funções.


O filme explora um tema caro ao diretor – a relação conflituosa entre gêneros e gerações, apresentadas no quarteto central do filme – Thomas Duston (John Wayne); Matt Garth (Montgomery Clift); Nadine Groot (Walter Brennan) e Tess Millay (Joanne Dru). Essas figuras tem muito a dizer sobre a América do Norte em 1948, quando o filme estreiou nos EUA. Apenas 3 anos haviam se passado após o fim da segunda guerra mundial, e as transformações podiam ser sentidas inclusive no cinema.


O pós-guerra transforma as relações dentro dos EUA, e as perspectivas do papel da mulher dentro da sociedade além das marcantes tensões entre as certezas e valores dos “pais” e os questionamentos dos “filhos”. “Rio Vermelho é um filme que em sua dinâmica e estrutura apresentam esse novo estado de coisas dentro de um país e se passa em uma geografia outrora tão familiar, agora transformada e reconfigurada, algo similar ao que os filmes noir fizeram com o ambiente urbano.

Como pode um filme tão expansivo, filmado essencialmente ao ar livre, alcançar uma atmosfera tão claustrofóbica e tensa? É um filme no qual a aparente liberdade - a promessa do estilo de vida dos cowboys clássicos se converte em aprisionamento na figura autoritária de Dunston? Os EUA, saindo de uma guerra na qual entraram sob o discurso da defesa da “liberdade” e democracia, encontravam no personagem de John Wayne manifestações do “grande inimigo”, mas tratado menos como uma figura simbólica do totalitarismo e mais como um personagem traumatizado, endurecido e inflexível. Ou seja, um personagem interpretado por John Wayne, uma grande estrela do período, revela seu lado mais sombrio – arrogante e autoritário e, ainda assim, carismática. É importante se levar em consideração que Wayne até ali era geralmente o protagonista, o representante de valores que o filme põe à prova e (parcialmente) renega. Essa ampla questão, social e política do choque de valores simbólicos é apresentada nas relações, nos olhares e nos pequenos gestos. Afetos que miraculosamente se sobrepõem à grandiloquência dos espaços e os absorvem. A grande geografia representada na “pequena geografia” - nos olhares e nas intimidades dos personagens.


Um drama doméstico ao ar livre... o feminino como libertação


Talvez essa natureza íntima no cinema de Howard Hawks seja o que faz seu cinema tão eclético, indo da comédia, para o musical, a sci-fi, o filme de aventura, o filme de guerra até o faroeste (e gerando pelo menos uma obra essencial em cada um desses gêneros). Está na natureza do cinema de Hawks examinar a mecânica de dado universo, os profissionais que o habitam, suas obsessões e seus relacionamentos, tudo mediado por um set de valores absolutamente definidos comoum código de conduta que não precisa nem deve ser verbalizado… um fair play.


Um ponto comum de conflito nos filmes de Hawks é o choque desses valores – o momento em que são tensionados. Muitas vezes a figura geradora desta tensão é do universo feminino, e seu choque se dá pelo atrito entre valores, catalisando ou rompendo processos do universo masculino. Ou simplesmente verbalizando as “palavras proibidas” no mundo masculino de Hawks, que abre a fenda para o íntimo dos homens da narrativa e os fragiliza, os altera, eles se tornam, ainda que momentaneamente, vulneráveis. O feminino em Hawks é uma força em si, e muitas vezes explorada em seu antagonismo a um dado universo masculino. As mulheres hawksianas geralmente são corajosas, independentes, inteligentes, desafiadoras e altamente capazes e como em Hitchcock tem a função de levar o masculino a se comprometer com a vida adulta, e a refletir sobre seus códigos trazendo novo significado à existência dos personagens uma vez que o objetivo anterior fora superado.


Em “Rio Vermelho” é preciso da força do feminino para sintetizar e ordenar o caos final - como as ferrovias, elas são parte do processo civilizatório do oeste, reconfigurando códigos e verbalizando o que os personagens masculinos não podem, não conseguem verbalizar e nem confessar para si mesmos – o amor pelos seus companheiros.


Essas personagens adentram o universo masculino com suas habilidades, conquistam o respeito dos homens e transformam esse mundo por dento. Tess é a responsável por dar um ponto final no embate entre Dunston e Garth, ela verbaliza o que os personagens e espectadores sentem por toda a duração do filme – que o amor entre essas figuras masculinas vai superar o código pelo qual eles têm vivido e, apenas através do confronto final, brutal, mas afetivo, os personagens conseguem dar vazão física ao amor que sentem um pelo outro. É a troca de socos que encerram o filme e sua narração por Tess, que sintetiza e reformula a relação pai e filho, que possibilitam um passado, presente e possível futuro para os personagens deste drama doméstico ao ar livre.

 

[1] Trecho da música “My Rifle, Poney and Me” do filme Rio Bravo. A autoria da música é de Dimitri Tiomkin e Paul Francis Webster e é interpretada por Dean Martin e Ricky Nelson no filme em questão.


[2] Vários críticos inserem neste ponto a representação dos indígenas nativos americanos. Não como personagens consolidados, mas como “forças da natureza”. Essa perspectiva pode ser aceito até certo ponto e dentro de certas obras e contextos. No entanto, tentar relegar toda a problemática da representatividade dos povos indígenas à uma forma simbólica é, no mínimo, inocente.


















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