Por Luiz Coutinho
I.
Fotogramas de Os Boas-Vidas (1953)
Na cena final de Os Boas-Vidas (1953), filme em que Federico Fellini reinventa sua juventude em Rimini, no interior da Itália, Moraldo espera o trem para Roma. Como seus amigos Alberto, Leopoldo, Fausto e Riccardo, ele conserva dentro de si um pedaço do cineasta, o qual se estilhaça em cinco personagens para compor esse mosaico de adolescentes muito vívidos e entediados, festivos e melancólicos. Cheios de vazio e esperança. Sozinho, Moraldo espera: a um plano geral que encolhe sua silhueta na plataforma da estação, segue a imagem de seu rosto reconhecendo o apito da locomotiva e deslocando seu olhar para o trem que vem de longe. Da imensidão da paisagem ao seu semblante hesitante, é uma mesma passagem que vemos operar, esta que é figurada pelo comboio que atravessa, como uma linha ou uma flecha, a paisagem horizontal. Passagem do coletivo (a trupe de amigos) ao individual (Moraldo), da descrição do espaço à subjetividade do personagem, da arquitetura horizontalizada da cidade à ferrovia que a corta no meio e traça uma linha de fuga em direção a Roma.
Moraldo sobe no trem. Tantas incertezas e expectativas. Tanto medo e fascínio pelo desconhecido. Um sentimento inominável que confunde o desejo de partir e a nostalgia que nasce no próprio momento da partida. Uma criança chama seu nome: é Guido, de quem Moraldo ficou amigo em uma de suas perambulações pela madrugada do vilarejo. “Para onde vai?”, pergunta o menino. “Não sei”, responde o mais velho. Guido corre ao lado da locomotiva, acenando e se despedindo. Moraldo acena de volta, mas, em sua mente, já começam a se formar as imagens do que ele deixa para trás: planos de seus amigos dormindo, perfilados pela montagem, invadem a sequência de forma fulgurante. Cada um em sua respectiva cama e filmado por um travelling impetuoso que, análogo ao movimento do trem, deixa impregnada na imagem o movimento fugaz de um adeus.
A última imagem do filme, entretanto, não é de Moraldo, nem do trem que se distancia na paisagem. Esta pertence a Guido, que, em primeiro plano, observa a partida de seu amigo. Ele vira as costas para a câmera e caminha de volta para a plataforma. Desta vez, ao contrário do que vimos acontecer com Moraldo, partimos do rosto do garoto para encontrar, ao final, sua silhueta apequenada na estação. O regresso à cidade tem o sentido de uma anexação ao espaço, como se o pertencimento ao vilarejo equivalesse a uma força centrípeta que o suga para o interior da imagem. Ora, Fellini é Moraldo, Alberto, Leopoldo, Fausto e Riccardo, mas também o menino Guido, que se devolve à cidade como um equilibrista de circo andando nos trilhos da ferrovia. Um movimento de partida e outro de retorno. Uma vida por construir, mas tantas lembranças... Roma diante de si e a memória de Rimini sempre o assombrando: a cena final de Os Boas-Vidas desenha um itinerário felliniano.
Fotograma de Os Boas-Vidas (1953)
II.
Fellini desembarca em Roma com o sonho de se tornar jornalista. Seu trabalho, por enquanto, é o de caricaturista, e não faltam, nesse caso, críticos ou acadêmicos que tracem uma relação entre a prática da caricatura e o trabalho futuro de concepção de personagens para o cinema. Ángel Quintana (2007, p. 13), por exemplo, escreve que esse tipo de desenho está na origem do personagem felliniano, “de físico particularmente expressivo, de traços rudimentares mas superdimensionados”. A arte da caricatura e dos quadrinhos populares faz parte, em Fellini, de um repertório popular mais amplo, que seus filmes nunca deixaram de tematizar: circo (Na Estrada da Vida, 1954), teatro (Os Boas-Vidas), casa de espetáculos (Noites de Cabíria, 1955) e fotonovelas (O Sheik Branco, 1952), entre outros, irrigam a tal ponto as imagens de seus filmes que se torna mais fácil, segundo Christian Viviani (1963), perceber neles as influências extracinematográficas – das práticas populares – do que aquelas do universo do cinema.
Só depois de passar pela redação do Marc’ Aurelio, hebdomadário satírico, é que Fellini começa a escrever roteiros. Seu primeiro trabalho no cinema, em 1942, foi na Alleanza Cinematografica Italiana (ACI), produtora fundada nos anos de fascismo e dirigida por Vittorio Mussolini, filho de Benito. Segundo Jean A. Gili (1979), seus primeiros roteiros, escritos para filmes de Mario Bonnard e Mario Mattoli, anunciam o neorrealismo italiano dos próximos anos, lançando mão de filmagens em externas, personagens extraídas do cotidiano, intrigas populares e emprego de dialetos romanos. Em 1943, nas instalações da ACI, o cineasta conhece Roberto Rossellini, de quem se torna amigo e colaborador: roteirista de Roma, Cidade Aberta (1945), O Amor (1948) e Francisco, Arauto de Deus, Fellini também tem grande influência sobre o quinto episódio de Paisá (1946), chegando a dirigir alguns planos do filme. A parceria com Rossellini nos conduz a uma questão fundamental, que ressurge constantemente na fortuna crítica sobre Fellini: qual seria a sua relação com o neorrealismo italiano? E o que essa relação nos incita a pensar, particularmente, sobre as formas encontradas por Fellini para figurar Roma e Rimini em seus filmes?
III.
Em “Cabíria, ou a viagem aos confins do neorrealismo”, André Bazin esboça os contornos dessa escola italiana surgida no pós-guerra. Não se trata do primeiro texto do autor sobre Fellini e tampouco sobre neorrealismo, mas é aquele em que se lê, de forma quase axiomática, que é “absurdo e derrisório” tentar excluir o cineasta do conjunto da produção neorrealista. Em cineastas como Rossellini, De Sica e Fellini, Bazin (2018, p. 390) reconhece uma mesma “primazia dada, tanto em uns quanto nos outros, à representação da realidade sobre as estruturas dramáticas”. Esse realismo das aparências, que nada deve ao naturalismo romanesco ou às estruturas teatrais, se define em sua dimensão fenomenológica, descritiva, pela qual “a realidade não é corrigida em função da psicologia e das exigências do drama” (ibid.). Em Noites de Cabíria, por exemplo, testemunharíamos uma estrutura episódica que, construída em torno de uma “gravidade vertical” das situações dramáticas, minaria por dentro a horizontalidade das relações de causa e efeito. Os episódios dramáticos adquirem relativa autonomia e se sobrepõem à própria noção de intriga, como se a descoberta quase documental de detalhes pitorescos, cotidianos e autossuficientes interessasse mais ao filme do que um encadeamento narrativo de ações e reações.
Fotograma de Noites de Cabíria (1955)
Na esteira desse argumento, Bazin (2018, p. 391) sustenta a hipótese de que os personagens fellinianos só são apreendidos em sua aparência: mais do que por traços “psicológicos”, seria por seus indícios exteriores, descobertos “na fronteira do indivíduo e do mundo”, que eles se definiriam. Fellini, contudo, iria tão longe nesse realismo das aparências que seu efeito estético seria, paradoxalmente, a redescoberta de um “duplo invisível” dos personagens – processo que Bazin nomeia “sobrenaturalização”. O cineasta conduziria o neorrealismo a uma espécie de inflexão decisiva pela qual a descrição fenomenológica do mundo remeteria, finalmente, a uma simbologia particular: daí a importância das figuras angelicais e da “angelização” de certos personagens, segundo Bazin. Nas palavras do autor, “tudo se passa, com efeito, como se, tendo chegado a esse grau de interesse pelas aparências, percebêssemos agora os personagens, não mais entre os objetos, mas por transparência, através deles” (Bazin, 2018, p. 391-392). Fellini representaria a última etapa do neorrealismo, isto é, aquela em que o realismo se produz mediante sua superação, “numa reorganização poética do mundo”. Como em Rossellini, o fenomenológico e o espiritual, o descritivo e o especulativo, a aparência e o mundo interior terminariam por se imbricar.
A proposição baziniana nos permite questionar se, em alguma medida, esse processo de “sublimação” (a passagem do registro à poesia) não é verdadeiro para a forma como Fellini filma as cidades italianas. Na Estrada da Vida nos ajuda a pensar o problema: em sua configuração que poderíamos chamar de neorrealista, o filme registra a sociedade italiana dos espetáculos circenses, dos conventos, das procissões, dos campesinos, entre outros, e, com isso – não “apesar de”, mas “mediante” –, atinge uma realidade poética que é aquela da desolação e do escapismo, da violência e do afeto, do desencanto e da inocência. Uns e outros intimamente ligados à matéria exterior que, como diria Bazin, constitui seu esboço. Se nos filmes de Fellini constantemente figuram concursos de beleza, quermesses, bailes, carnavais, peregrinações, entre outros, é porque esses signos exteriores da sociedade italiana do pós-guerra nos informam sobre algo mais profundo que a habita e anima.
Fotogramas de Na Estrada da Vida (1954)
IV.
Em O Sheik Branco, um casal decide passar a lua de mel em Roma. Ele (Leopoldo Trieste) tem um roteiro de viagem pronto: apresentar sua esposa (Brunella Bovo) à família, visitar alguns lugares turísticos e receber a bênção papal no Vaticano. Ela, por sua vez, só tem cabeça para o ator do “sheik branco” (Alberto Sordi), protagonista de sua fotonovela preferida. Sua ida a Roma, que se torna um pretexto para encontrar o ator após uma troca de correspondências, assume finalmente uma dimensão quase fantástica: ela foge do marido e se vê enredada na produção de um dos episódios da fotonovela.
Na primeira sequência do filme, imagens de Roma são filmadas a partir de um trem em movimento. O contracampo dessas vistas romanas é o rosto do marido, Ivan, na janela do vagão, o que nos informa que aquilo que víamos anteriormente coincidia com seu ponto de vista. Ora, é somente com a chegada à estação que descobrimos que havia uma mulher com ele – sua esposa, Wanda. Onde ela estava? Por que não a vimos olhando Roma passar pela janela? Porque – depois entendemos – sua Roma não é a mesma que aquela vista pelo marido. Sua “Cidade Eterna” é uma projeção, uma fantasia produzida pelo consumo das fotonovelas. Enquanto Ivan olha para fora do trem, Wanda volta o olhar para dentro de si. São, literalmente, duas as Romas de O Sheik Branco: quando a esposa foge do marido para encontrar o possível amante na rua XXIV Maggio, ela se depara com um imenso escritório que hospeda a produtora da fotonovela; quando o marido faz o mesmo trajeto, a arquitetura da cidade parece outra e o edifício subitamente não existe mais.
Fotogramas de O Sheik Branco (1952)
Ver Roma, como faz Ivan, mas também fantasiá-la, como Wanda: há aí uma sugestão do método felliniano. Trata-se de reconhecer na arquitetura, ou na matéria, camadas mais profundas, invisíveis, que a animam a partir de uma espécie de inconsciente da cidade. Não foi Freud (2010) quem, nas primeiras páginas de O Mal-Estar na Civilização, comparou – em tom espirituoso – a estrutura psíquica com a cidade de Roma? O psicanalista traçava uma analogia entre as diferentes camadas históricas que se emaranham na metrópole romana – pensemos na coexistência de ruínas antigas e construções modernas – e o funcionamento do inconsciente, no qual resíduos do passado são preservados e trazidos novamente à luz em determinadas circunstâncias. A esse respeito, Julien Neutres (2013) sugere que a representação de Roma, nos filmes de Fellini, não está distante da “figurabilidade” descrita na teoria freudiana dos sonhos. Mais do que antinômica, ela seria simultânea, ou seja, ao regime do “ou” ela substituiria a economia do “e”: passado e presente, fantasia e realidade, espírito e matéria. Fellini olha para Roma e, como o marido de O Sheik Branco, reconhece as linhas, as formas e os pontos; mas, como a esposa do mesmo filme, vê a cidade através dela, em suas zonas invisíveis, seus fluxos vitais e sua energia particular. Cinema do consciente e do inconsciente, da matéria e da memória, da realidade e da fantasia.
O grande filme de Fellini, construído no intervalo desse duplo investimento, permanece A Doce Vida (1960), no qual o jornalista Marcello (Marcello Mastroianni) é, ao mesmo tempo, testemunha e cúmplice de uma sociedade romana embebida nos efeitos do milagre econômico italiano pós-Segunda Guerra. Artistas hollywoodianos, intelectuais decadentes, paparazzi incansáveis, elites hedonistas, relacionamentos em crise, espetáculos noturnos, massas de fiéis, entre outros, compõem o mosaico de personagens e valores de uma nova Babilônia em ebulição. Uma Roma que, como nos indica a primeira sequência do filme, é aquela do helicóptero que atravessa o céu e também da estátua de Cristo que é por ele carregada; uma cidade, ao mesmo tempo, das ruínas antigas e dos novos complexos habitacionais, do provinciano que filma e do cosmopolita que atua como seu alter ego.
Fotogramas de A Doce Vida (1960)
Alguns anos depois, o cineasta dará continuidade a esse trabalho de “historiador-sismógrafo” (Didi-Huberman, 2013, 112) – simultaneamente, “descritor dos movimentos visíveis” e transmissor dos “movimentos invisíveis que sobrevivem”, urdidos sob o solo romano – em Roma de Fellini (1972). Para Ángel Quintana (2007, p. 60-61), três são os níveis de representação de Roma nesse filme: a cidade como “mito” (espaço simbólico e nostálgico das conquistas heroicas do passado), como “matéria” (cidade moderna em constante transformação) e como “inconsciente” (projeção de mundos ocultos e invisíveis). Três níveis que se entrelaçam em uma trama figurativa complexa, que faz de Roma “um caleidoscópio no qual o mito da cidade eterna se sobrepõe ao real, e o vivido ao sonho” (Quintana, 2007, p. 59).
A Doce Vida representa um momento de inflexão importante na obra de Fellini, do ponto de vista de sua relação com o neorrealismo. Não é trivial que, no filme, um jornalista pergunte à atriz interpretada por Anita Ekberg se o cinema neorrealista está vivo ou morto. Depois de uma filmografia devedora ao princípio fenomenológico da filmagem em externas, Fellini faz a opção, em A Doce Vida, pelo trabalho em estúdio. A Cinecittà, e, mais especificamente, o galpão nº 5 desse imenso complexo industrial-cinematográfico, se torna o set de filmagem privilegiado de Fellini, onde o realizador reconstrói, entre outros, a Via Veneto romana. Inaugurada em 1937, em um terreno na periferia sudeste de Roma, a Cinecittà se torna, para o cineasta, um “laboratório mágico, alquímico, demiúrgico” (Fontan, 2017, p. 126) no qual tudo está por (re)criar e (re)construir. A mudança para o estúdio, onde Fellini permanecerá durante toda a carreira, não só radicaliza o aspecto artificial de seu cinema, desde o início influenciado pela arte da caricatura, como coloca em crise a própria noção de realismo.
Com a passagem para o estúdio, o próprio estilo de Fellini se metamorfoseia: segundo o depoimento do diretor de fotografia de A Doce Vida (Martelli apud Amengual, 1963), o cineasta teria substituído as lentes normais ou grande-angulares (habituais nos filmes anteriores) pelas lentes de maior distância focal (as chamadas “teleobjetivas”). O principal efeito plástico dessa mudança é a aproximação das diferentes camadas de profundidade do quadro, ou seja, o avizinhamento do primeiro e do último plano da imagem. Ligando “próximo e longínquo, fora e dentro, protagonistas e comparsas, observados e observadores” (Amengual, 1963, p. 19), Fellini escapa de um registro neorrealista usual e encontra uma forma singular de figurar uma Roma do “e”, e não do “ou”.
Fotograma de A Doce Vida (1960)
Em filmes seguintes, como 8 ½ (1963) e Julieta dos Espíritos (1965), a estética felliniana pende cada vez mais para a figuração do imaginário, dos fantasmas do inconsciente e dos sonhos. As formas de filmar Roma não passam incólumes a esse processo de subjetivação. Alberto Moravia (1975, n.p.) escreve, sobre Roma de Fellini, que a relação do cineasta com a Cidade Eterna teria se tornado a mesma que a de Flaubert com Cartago: ele teria inventado “uma cidade imaginária, construída por uma fantasia densa e barroca, para desafogar um certo sentimento da vida, projetar uma certa visão do mundo”. Em um texto sobre o cineasta, Umberto Eco sugere que Fellini teria trapaceado certa ontologia que afirma que toda imagem cinematográfica inevitavelmente registra uma realidade material de ordem pré-fílmica. Como se redimisse o cinema dessa realidade, ou seja, daquilo que lhe é exterior, o cineasta teria demonstrado a possibilidade de “uma arte que é reconstrução de mundos interiores, por mais privados que sejam” (Eco, 1983, n.p.). Alquimista ou demiurgo, mágico ilusionista ou barroco, Fellini nunca deixou, entretanto, de se reivindicar neorrealista. Dado que sempre foi fiel à sua tendência de historiador-sismógrafo, somos tentados a acreditar nele. Pois, convém lembrar, o neorrealismo se conjuga no plural, e o de Fellini não é o mesmo de Luchino Visconti, Vittorio de Sica e, sobretudo, Cesare Zavattini.
Fotograma de Roma de Fellini (1972)
A partir de A Doce Vida, o espetáculo, que antes aparecia como elemento diegético (o circo, o music-hall, o carnaval), se torna elemento organizador: o realismo singular de Fellini se torna “a realidade reelaborada imaginativamente como um ‘espetáculo’ ou, se preferirmos, o espetáculo retirado de seus domínios específicos para ser fundido à realidade do dia a dia: espetacularização poética do cotidiano” (Amengual, 2009, p. 176). A mudança não é, evidentemente, sem nuances. Na Estrada da Vida, por exemplo, já era paradigmático em seu processo de “corrosão do real pelos efeitos do circo” (Païni, 2004, p. 111). Em Fellini, realidade e espetáculo se confundem, assim como o real e sua fantasmatização. Não era o que encontrávamos em germe na primeira cena de Os Boas-Vidas, em que, antes de sermos apresentados aos personagens principais, víamos as sombras que suas figuras projetavam nas paredes da cidade?
V.
Rimini retorna em Amarcord (1973), reconstruída em estúdio. A praça central do bairro Borgo San Giuliano em seus anos de fascismo – com seu cinema, suas lojas, sua igreja e seus cafés – é inteiramente recriada na Cinecittà. Mudam as cores, que se tornam mais vivas, e a escala das construções, que se torna maior. Estamos longe do naturalismo, e próximos de um artificialismo sempre reivindicado. O tom é irreal, as figuras se assemelham a caricaturas, e o filme persegue a estrutura episódica que Fellini cultivou em quase todos os seus filmes. Em 1967, o cineasta, internado após complicações cardíacas, escreve “La mia Rimini” (“A minha Rimini”), coletânea de recordações nostálgicas de sua adolescência. Nesse texto, afirma: “toda vez que estou em Rimini, sou assaltado por fantasmas que pensei que estivessem ordenados, classificados de uma vez por todas” (apud Quintana, 2007, p. 65). Amarcord, que em dialeto romanhol significa “eu me lembro”, é o filme em que Fellini recorda sua juventude em Rimini, não para restituí-la com fidelidade, mas para inventá-la continuamente, conjugando-a no futuro do pretérito: “Fellini nunca narra o que acontece, o que aconteceu ou o que vai acontecer, mas o que poderia acontecer se...” (Masoch; Mejean, 2023, p. 32). Memória e fabulação se tornam sinônimos.
Fotograma de Amarcord (1974)
Embriagado por certo perfume nostálgico, Amarcord é também um filme sobre a Itália fascista. E a nostalgia, o retorno idílico a esses fantasmas que nunca foram exorcizados, permanece um instrumento valioso para o historiador-sismógrafo que foi Fellini. Nas palavras do próprio cineasta, fascismo e adolescência compartilham uma mesma raiz, uma mesma suspensão ou negação de compromisso social: trata-se, em um como em outro, “de permanecer eternamente crianças, de transferir nossa responsabilidade para outros, de viver na sensação reconfortante de que existe alguém que pensa por nós e que pode ser a mãe, o papa, o prefeito, o Duce, a Madonna, o bispo, em suma, os outros” (Fellini apud Masoch; Mejean, 2023, p. 28). Em sua radiografia da sociedade fascista italiana, Fellini não está distante de um grande amigo, Pier Paolo Pasolini, crítico à sociedade de consumo do pós-guerra. A “liberdade limitada e travessa”, os “sonhos ridículos” e os “mitos monstruosamente ultrapassados” (palavras do cineasta) são motivos centrais de Amarcord, que faz de uma Rimini construída em estúdio um espelho distorcido, uma memória deformada, do momento em que o país aderiu quase totalmente à ideologia fascista.
Embora Amarcord multiplique as personagens e descentralize a narrativa, podemos afirmar que seu protagonista – espécie de duplo de Fellini no filme – permanece Titta. Entre peripécias escolares, descobertas sexuais e jornadas em família, o adolescente interpretado por Bruno Zanin apaixona-se por Gradisca (Magali Noël), a cabeleireira da cidade com ares de estrela de cinema. No desfecho do filme, veremos o casamento desta mulher idealizada – uma entre tantas na filmografia de Fellini – com um soldado fascista. A cerimônia, realizada ao ar livre, dispõe de tendas improvisadas e mesas largas na planície ensolarada. O acordeonista cego do vilarejo faz ecoar as notas musicais de Nino Rota. As campânulas trazidas pelo vento anunciam a primavera. Gradisca, em seu vestido de noiva, entra no carro e parte em direção ao horizonte, abanando um lenço branco pela janela do veículo. As crianças do vilarejo correm atrás do carro, dando adeus à sua musa. Titta não está entre elas, e, na verdade, mal o vemos nessa sequência final: momentos antes, o filme encenava o funeral de sua mãe. Para Titta, como para Fellini, há algo que se enterra e algo que vai embora. Há uma melancolia do que partiu e já não volta, exceto por uma ressurreição que apenas a arte permite.
Como em Os Boas-Vidas, a última imagem de Amarcord não é do veículo que leva a personagem embora, mas daqueles que ficaram para trás. Depois de filmar o carro de Gradisca percorrer o horizonte até desaparecer no fora de campo, a câmera realiza um movimento lateral que termina por enquadrar os habitantes da cidade no crepúsculo da planície. Em Fellini, todo movimento de partida é também um movimento de retorno, ou seja, toda prática artística é tributária dos fantasmas que nos assombram. Que esses fantasmas habitem Rimini e/ou Roma, cidades muitas vezes conjuradas no espaço demiúrgico do estúdio de cinema, não é um detalhe irrelevante na filmografia do cineasta. Em 8 ½, o cineasta Guido Anselmi (Marcello Mastroianni) parece advogar por Fellini: “O meu filme seria um pouco útil para todos e ajudaria a enterrar o que de morto carregamos. Mas sou o primeiro a não ter coragem de enterrar nada”.
Fotogramas de Amarcord (1973)
Referências
AMENGUAL, Barthélemy. Itinéraire de Fellini: du spectacle au spectaculaire. Études cinématographiques, Paris, v. 15, n. 28-29, p. 3-26, 1963.
______. “Propositions pour un portrait du jeune Fellini en néo-réaliste”. In: GILI, Jean A. (org.). Federico Fellini. Paris: Éditions Scope, 2009. p. 174-181.
BAZIN, André. O que é o cinema?. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
ECO, Umberto. “Theut, Fellini e il Faraone”. In: MIRO, Ester de; GUARALDI, Mario (orgs.). Fellini della memoria. Rimini: La Casa Usher, 1983.
FONTAN, Benjamin. “Cinecittà, une cité dans la ville du cinéma”. In: MORICE, Jean-René; TADDEI, Jean-Claude; PETEGHEM-TRÉARD, Isabelle Van (orgs.). Territoires du cinéma. Paris: L'Harmattan, 2017. p. 121-136.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização: novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GILI, Jean A. Du journalisme au cinéma: l'itinéraire de Fellini, de 1939 à 1946. Études cinématographiques, Paris, v. 44, n. 127-30, p. 5-18, 1981.
QUINTANA, Ángel. Federico Fellini. Paris: Cahiers du Cinéma & Le Monde, 2007.
MASOCH, Caroline; MÉJEAN, Jean-Max. Amarcord de Federico Fellini. Paris: Éditions de Grenelle, 2023.
MORAVIA, Alberto. Al cinema. Bompiani: Milão, 1975.
NEUTRES, Julien. Et Fellini fonda Rome.... Paris: le cherche midi, 2023.
VIVIANI, Christian. “Les sunlights de Fellini et les feux du music-hall”. In: GILI, Jean A. Du journalisme au cinéma: l'itinéraire de Fellini, de 1939 à 1946. Études cinématographiques, Paris, v. 44, n. 127-30, p. 5-18, 1981.
Comentarios