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REVENDO AMIGOS: A GIRA INFINITA EM 8½

Por Bernardo Oliveira

 

“Ouça-me bem amor, preste atenção, o mundo é um moinho...”

 

O sonho primordial, o primeiro sonho, o diagnóstico: o engarrafamento como metáfora do bloqueio; sussurros e olhares através dos vidros de carro, metáforas da exposição social, da vergonha pública, da fraqueza do indivíduo; a asfixia, a fuga e o sobrevoo que se convertem em alusão ao controle (a presença do advogado). Durante toda a sequência, a câmera observa um personagem cujo rosto não podemos ver, mas sabemos que se trata de Guido. Fellini observa seu alter-ego, a câmera filma uma presença duplicada. E então, a queda, a vertigem: o despertar e a consciência da doença, os médicos entram e saem. De volta à realidade, o ponto de vista da câmera confunde-se com o ponto de vista do alter-ego, o espelho é re-duplicado. Mais tarde, o meio-dia do garanhão se confunde com a manifestação de uma consciência festiva, uma festa infanto-juvenil. “Asa nisi masa”, a-ni-ma, alma: o mito da essência reside nas memórias da infância. Guido, mimado, mascara sua verdade e se esquiva entre máscaras: eis uma versão incógnita de sua verdade. As mulheres que o cercam durante sua infância, que lhe cobrem de amor, cuidado e atenção, migram para uma teatralização de condescendências, em que as mulheres de sua vida perdoam sua indulgência, seu mau-caratismo, suas fraquezas. A carga de dúvidas, culpa e incerteza leva à necessidade de uma alienação, de um autoexílio, de um delírio onde o conforto é proporcionado por mulheres imaginariamente domadas e domesticadas conforme as necessidades do macho-alfa e provedor. Segunda verdade inconveniente. Elas, contudo, se revoltam, o chicote surge como a expressão plástica de uma masculinidade tirânica, patriarcal, que reage brutalmente contra qualquer ameaça, qualquer desgosto. A eficácia do chicote cai por terra quando o garanhão precisa responder às questões implacáveis do jornalismo carniceiro, quando chega a hora de prestar contas e submeter-se ao escrutínio da mídia, da indústria, da opinião pública. E, então, o delírio final: “La Passerella d'Addio”, de Nino Rota, embalando o circo da memória, o falatório da consciência, o fluxo da imaginação encarnado na presença festiva do Circo, a imagem possível de uma reconciliação parcial, de uma faísca de felicidade, de renovação, de liberação. Parece que descrevo uma trajetória auspiciosa, de superação e retorno à essência, mas  exprime algo mais arriscado. O jogo de espelhos conduzido pela câmera reflete o modo errático com o qual Fellini lida com seu alter-ego, a forma como ele observa Guido e o representa ao longo do filme. Controlar o abandono, o caráter errático da imaginação atordoada, é exatamente isso que impressiona em .


Praticamente tudo já foi escrito sobre Fellini, e ainda mais sobre esse filme, o apogeu do seu cinema. Com a enigmática contradição de que muitos atribuem a sua obra-prima a característica de se manifestar sob a forma de “uma meditação poderosamente criativa sobre a incapacidade de criar” (Metz, 1974). Michel Chion retoma o célebre ensaio de Christian Metz para pensar  a partir não da contradição, mas do espelho, do ato de espelhar-se, de projetar-se e moldar-se livremente conforme uma imaginação indecisa, incapaz de conceder a verdade, seja a Marx ou ao Cristianismo. “Fellini obviamente se duplica”, diz Chion, a duplicação constituindo, pelo menos à primeira vista, o próprio método do filme, sua força de liberação e seu paradoxo: “quanto mais nos concentramos no personagem desinteressante em si, mais os personagens ao seu redor se tornam verdadeiros, vivos, autônomos e mais o espetáculo se desenrola”. Anular-se para duplicar-se até desaparecer em meio à multidão. Como na sequência final de Noites de Cabíria, uma espécie concentrada de : Cabíria escapa de ser assassinada, vaga triste, em pranto, pelas ruas, até que o Circo chega, e com ele chegam as gargalhadas e danças bruscas; Cabíria anda e olha para a câmera timidamente, seus olhos se enchem d’água e acertam em cheio a mente e o coração do espectador.


O ensaio de Metz, contudo, vai além: “devemos ter o cuidado de perceber, é um filme que é duplamente duplicado – e, quando se fala dele como tendo uma construção de espelho, é na verdade uma construção de espelho duplo de que se deveria estar falando”. De saída, portanto, convém perguntar se esta estratégia de “dupla duplicação” (o filme sobre o filme impossível que, contudo, é o próprio filme e não é) não representaria o método-Fellini em sua essência, a presença que se autoanula em repetidos desdobramentos, imantada pela força infinita do acaso, do emaranhado de afetos e afecções que emanam da presença das pessoas, dos animais, das coisas, das instituições, de tudo, absolutamente tudo aquilo que exclui o eu?

 

“Eu sou Eu – o argumento de ”, segundo Glauber Rocha. A tautologia, assim colocada, não se sustenta, se não que o filme parece lidar com uma miríade de som e imagem que eclodem de uma exclusão parcial: tudo existe, exceto Guido, um diretor de cinema que enfrenta um bloqueio criativo, sente-se desprovido da capacidade de realizar seu filme, absorvido por rupturas infinitas, delírios imaginativos e fantasmas do passado. Nesse redemoinho da memória e da imaginação, Fellini libera um cosmos de situações, cenários e personagens, sons e imagens em fúria, planos com variações de profundidade, precisão na disposição dos objetos e nos movimentos de câmera, e, é claro, os closes excepcionais (cuja referência encontramos talvez em Dreyer e Welles), poses hieráticas e cartunescas a um só tempo. Se Deleuze acerta em afirmar o close como a expressão fílmica dos estados de alma mais intensos, é possível atribuir aos closes de  a característica fundamental não só de exprimi-los como também de esgarçá-los, “monstrificá-los” de tal maneira que se pode estendê-los à crise moral de nosso tempo. “Uma reflexão sobre os contornos atuais do sentido moral”, nas palavras de Pierre Kast, uma indagação sobre a obsolescência do pecado – “O que é pecado? Este pecado cujas fronteiras se tornaram nuas, particularmente embaçadas...”


Ao girar em torno de si mesmo, Fellini parece lidar com uma espécie estranha e autoexclusão. O eu que se extrai de toda a espiral é um eu que se retira dos círculos do tempo para, enfim, alcançar alguma paz. Na ausência de condições mínimas para se orientar na terra devastada por uma guerra nuclear, Guido planeja uma fuga para o espaço. Uma fuga que custa 80 milhões de dólares. Diálogos propositalmente truncados jogam o espectador em um fluxo de ruído e incompletude, em uma comunicação que parece se tornar impossível conforme o filme avança. As frases que mudam abruptamente o assunto (nos sonhos principalmente) fornecem o ritmo caótico sugerido pelo contínuo turbilhão de perguntas dos produtores, técnicos, atores e atrizes envolvidos no filme. Por isso,  é portador não somente de uma incompletude básica (o “meio” como indício da impossibilidade de toda completude e de toda finitude), como também de uma representação gráfica do infinito, que nesse caso pode também ser lido como ausência de um tempo linear, comum, cronométrico e cronológico.  A sacação genial de Gilda de Mello e Souza, ao classificar os planos de  em planos horizontais e planos verticais, ensaiam um diagrama que se orienta em função de uma legibilidade, mas também de uma impossibilidade: trata-se de uma experiência com tempo e imagem que só se pode acessar enquanto vigora a mágica do cinema, de tal forma que a distinção entre sonho e realidade se torna uma perspectiva de ordem fictícia, maleável e manipulável. Circularidade, infinito:  não recusa o tempo, reconhecendo tamanha impossibilidade.  abraça a temporalidade possível, uma temporalidade que se joga na gira do tempo infinito para selecionar apenas aquilo que resta no vale-tudo da imaginação. O tempo, aqui, é o tempo sem eira nem beira da experiência, uma bela confusão:

 

[...] a categoria ‘tempo’ se encontra sempre em estado de fluxo-e-refluxo: perguntar se o último plano do filme é, de facto, o primeiro é o mesmo que perguntar se determinada onda que vemos rebentar na praia não será a primeira que alguma vez rebentou no início do mundo. Circularidade é algo que está muito próximo do conceito de infinidade, e não é por acaso que o algarismo 8 se encontra logo no título do filme – como se sabe, o que mais sugestivamente remete para a ideia do infinito. (Frederico Lourenço, Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema Tutto Fellini! A Cinemateca com a 13ª Festa do Cinema Italiano 10 de novembro de 2020)

 

O mote do cineasta vivendo uma crise criativa fornece o diapasão para que o autor continue a atacar o ambiente cultural italiano, particularmente a crítica cinematográfica. Talvez por isso o neorrealismo felliniano seja aquele que hoje menos se acomode à moral vigente, pois se trata não de um político, ou de um historiador, mas de um “mago” que já desistiu de buscar a salvação:

 

Fellini é neorrealista, como Visconti, Antonioni ou Rossellini, mas seu neorrealismo diverge das outras tendências dominantes. A contradição entre o Historicismo de Visconti e o Misticismo de Rossellini não exclui o naturalismo que abastece as variantes estilísticas da mesma estória... Fellini fura o bloqueio culturalista. É um Mago, não é Político como Visconti, nem Moralista como Rossellini. Visconti quer salvar pela Paixão, Rossellini pela Sabedoria. Fellini não se preocupa com a salvação, ele quer viver o sonho bárbaro pagão, quer ser amado pelo mundo, mas não confia na sexualidade e por isto se nega a interpretar o papel de Guido. (Glauber Rocha em Glauber Fellini)

 

Recusando-se a interpretar o papel de Guido, Fellini recusa-se também a encarar a finitude em todas as suas expressões, seja a finitude carnal, seja a finitude da obra. A crise moral para a qual seus filmes apontam expressa também a crise ideológica que marcará o campo político italiano e que, mais tarde, particularmente a partir de 1968, demarcará também a decadência da recepção do cinema felliniano, talvez muito imaginativo para a urgência com que se opõem as visões políticas e suas respectivas radicalizações. “Ao nos deixar tão prematuramente, Fellini fugiu, por ódio ou apreensão, dos horrores da decrepitude?”, perguntou Michel Chion na homenagem organizada pela Cahiers du Cinema (ed. 474) em dezembro de 1993. E por essa razão, creio eu, seu filme é portador de pelo menos três ou quatro desfechos, todos provisórios e ambíguos, carregando adiante a dificuldade de qualquer relação com a finitude. Em um final possível, diante de tantas cobranças e dúvidas – “Ele está perdido! Não tem nada a dizer”, uma jornalista grita, possuída; Guido, então, parece abandonar-se ao sabor das culpas e memórias, acerta as contas com as mulheres que destratou; investido de uma atitude juvenil, escapa pelo vão da mesa de conferência, engatinhando como uma criança; acuado, saca a arma e se suicida – “que romântico incurável!”.


Na sequência, outro final possível – obviamente, ao recusar o tempo cronológico,  não poderia terminar exalando ares conclusivos. Guido desiste do filme, se despede da equipe e terá sua última conversa com Daumieur (Jean Rougeul) – personagem que representa o conservadorismo da intelectualidade italiana. Daumieur lhe parabeniza por não realizar o filme, pois, afinal de contas, “já há coisas supérfluas demais no mundo, mais desordem é inútil”. Eles entram no carro e o aparecimento do mago Maurice (Abdalqadir as-Sufi) determina outro momento, outra possibilidade de desfecho: “estamos prontos para começar”, anuncia o mago, e o carrossel do delírio se põe a girar: primeiro, o rosto de Claudia (Claudia Cardinale), de seus pais e avós, de Saraghina (Eddra Gale), e, então, segue-se o cortejo dos personagens, todos de branco, caminhando sem rumo, como que revirando sua alma (“Asa Nisi Masa”), revolvendo a terra morta e trazendo alguma alegria, alguma faísca de felicidade; rapidamente, retorna a confusão, o medo, a dúvida. Mas é deste carrossel de sentimentos que o filme se nutre e se renova, assim como a força e a consciência do personagem central. “Esta confusão sou eu”, brada Guido/Fellini, clamando pela compreensão de sua esposa, Luísa (Anouk Aimée). Ele retoma o megafone e grita: “um momento, deixem que eu dou o sinal!”. Um filme que, como a vida, nasce, morre e renasce na gira infinita de todos os dias.

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