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Quanto mais quente melhor...

O diretor Billy Wilder disse certa vez: “Se meu filme divertir o público por duas horas e render uma conversa de 15 minutos, cumpriu seu papel”. Propor uma conversa parece ser mais difícil do que divertir, já nos ensina o diretor. Mas recordar-se das cenas, falar do que se viu e do que causou o riso ou uma gargalhada numa comédia faz com que seu efeito perdure.


Hoje, estamos aqui retomando este clássico do humor, filme que, mesmo com algumas arestas que surgem com os tempos atuais, fisga o olhar e o sorriso, naquilo que uma imagem de cinema enquadra no espectador. Quando convidava alguém para a noite de hoje, muitas pessoas diziam, sorrindo, adorar o filme ou ainda lembravam e citavam cenas, sempre com o sorriso no rosto, ou perguntavam: “é um com a Marilyn?”. Portanto, a conversa de 15 minutos proposta por Wilder já dura 64 anos – ou os risos e as lembranças que suas imagens provocam. Nesta noite, seremos mais breves...


Dois músicos à deriva numa maré de azar fogem para um balneário em Miami e a maré/amar é capaz de mudar. “Josephine” e “Daphne” se encantam por Sugar Kane. Ou melhor, talvez apenas Josephine, Daphne parece querer algo diverso, que só um ícone como Marilyn parece saber dizer. Como ele diz ao ver Sugar caminhando na estação: “Olha aquilo. Parecem gelatina sobre molas!”. Jack Lemmon, o ator que dá vida a Daphne, disse: “Não quero andar como uma mulher, mas como um homem fingindo ser uma mulher”. Algo aí se desequilibra entre os gêneros, algo claudica. O que se finge? O que se performa? Por que rimos muito de tudo isso a que assistimos em Quanto mais quente melhor? Tenho uma hipótese que só revelo mais a frente, neste breve texto que leio a vocês. Um pouco de suspense pode também ser divertido.


Freud (1996a), em seu ensaio “O humor”, de 1927, considera o humor um dom raro e precioso, além de teimoso e rebelde. Podemos fazer uma distinção entre os chistes e o cômico em sua elaboração de 1905 no texto “Os chistes e sua relação com o inconsciente”. Ele se propunha a desvendar o que faz uma piada risível e qual a função do riso na economia psíquica do sujeito. Como sabemos, diante daquilo que ele nomeou de formações inconscientes, ou seja, atos falhos, sintomas, sonhos e chiste, este último é a formação que mais se insere no social. Diferentemente, por exemplo, dos sonhos, que se apresentam ao outro quando narrados, o chiste precisa do outro para de alguma forma afirmá-lo de imediato.


Por se tratar de uma formação do inconsciente, ele dá passagem para algo daquilo que Freud nomeou como material recalcado. O interessante é que para isso não se paga o preço da angústia ou daquilo do qual se padece no sintoma. Podemos dizer que o humor surge, então, como um parceiro, se faz álibi de alguma verdade do sujeito, que até então não podia ter sido dita. São as corriqueiras frases que ouvimos e que nos revelam algo dessa parceria: “Falei, mas era brincadeirinha!”, “Credo! Que delícia!”, “Toda brincadeira tem um fundo de verdade”. Assim, essa verdade dita de forma jocosa, de brincadeira surge em efeito nonsense, esdrúxulo ou absurdo, com uma revelação de sentido que fisga por seu efeito de surpresa, fazendo surgir até uma ruidosa gargalhada. O humor localizado nos chistes é um atalho que não visa prender a verdade num sentido, mas possibilitar ao sujeito se confrontar não só com sua divisão, como também com sua própria tragédia – e por que não, rir dela. Lacan, em seu texto “Função e campo da fala e da linguagem” (1953), nos indica que no texto freudiano dos chistes se demonstra o efeito do inconsciente “[...] até os confins de sua fineza e a face que ele nos revela é justamente a do espírito, da espirituosidade, na ambiguidade que lhe confere a linguagem [...]” (LACAN, 1998, p. 271). Nessa construção criativa, o chiste desafiaria o real em sua própria ausência de sentido.


Podemos também traçar uma breve distinção entre o humor e o cômico. O humor faz um apelo ao simbólico, sua criação é repentina, pois através da surpresa e do inesperado cria-se um sentido novo. Articulado e dependente dos efeitos da linguagem, marca o traço do particular. É preciso saber um pouco do que se comunga para que um dito espirituoso tenha seu efeito. Há assim a produção do equívoco, do jogo de palavras, da ambiguidade. O cômico tem uma vertente mais universal, trejeitos, mímicas, olhares que se recheiam de sentido, um viés imaginário. O humor possibilita ao sujeito rir de si mesmo, expõe sua incompletude, sua falha, mas que vale o riso. Quase uma operação, “ [...]ao custo de uma liberação de afeto que não ocorre: procede de uma economia na despesa do afeto.” (FREUD, 1996a, p. 212), ou seja, uma forma de obter prazer no humor, apesar dos afetos dolorosos que se apresentam com ele. De alguma maneira, o humor poupa os afetos. É o que nos diz Freud ao falar do humor no texto dos chistes. Assim, compreendemos que o humor cumpre seu percurso também no próprio sujeito, o prazer humorístico pode surgir e irromper sem uma mediação. O humor pode ser “um dom precioso e raro”, “não é resignado mas rebelde” (FREUD, 1996b, p. 166) de acordo com Freud, mas o humor é também revolucionário, e TRANSgressor.


Após terem testemunhado crimes cometidos por mafiosos na Chicago dos anos 1920, período da Lei Seca, os dois músicos de nosso filme, Jerry e Joe, precisando fugir e se ocultar, se apresentam já montados para entrar em um trem junto à banda composta somente por mulheres: “Eu sou Josephine e esta é...”, “Daphne”. Um nome diferente do combinado irrompe, há uma escolha do nome da personagem montada de Jack Lemon, a dupla de Josephine não é mais Geraldine. Há aqui uma divergência que se inicia no percurso da dupla inicial do filme. Um detalhe interessante de se observar são as falas “montadas” do filme, no sentido de que tudo que se diz está recoberto, há sempre um dito não dito. Uma espécie de enigma para o espectador, o que se mostra de maneira despretensiosa anuncia algo, ao se olhar atentamente há algo por baixo dos panos.


DRAG – dressed to resemble a girl –, um acrônimo que se tornou uma palavra da língua inglesa apropriada também em nosso idioma. As queens, as drags não buscam passabilidade, elas não querem ser uma mulher, elas querem parecer uma mulher. Judith Butler, filósofa americana e conhecida por seus estudos sobre o gênero a partir do debate com as feministas, nos diz que: “Ao imitar o gênero, a drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero – assim como sua contingência” (BUTLER, 2020, p. 237). Seguindo os preceitos da filósofa, as normas de gênero estão construídas pelo aparato do binarismo. Assim, o gênero está presente na prática social de cada indivíduo. Para Butler, “[...] o gênero é somente a instância de uma operação de poder regulatório mais ampla [...] o poder regulatório que governa o gênero é, ele próprio, específico do gênero” (BUTLER, 2022, p. 75). Para ela, por ser uma prática social, ele é efeito da própria norma que em sua reiteração incide e define os corpos, por isso seria possível dizer que gênero é uma atribuição, mas também uma prática do corpo, uma ação, e isso nos possibilita aproximá-lo do conceito de performatividade.


Na sua busca por uma distinção entre os termos “performance” e “performatividade”, Butler se vale das drag queens e toma a performance delas como uma paródia do binarismo. Podemos notar que, em corpos cisgêneros, termo que se surge a partir da ideia de transgeneridade, os construtos são mais facilmente observáveis, já que reiteram as normas. A própria drag usa a paródia para distinguir o que é do performativo e o que está no campo da performance. Apesar de atuar no limiar, a distinção está posta. Uma performance é uma arte de fronteira, uma arte híbrida entre diversas linguagens. No fazer das drags, a cada montagem, ou montação, elas vão se apropriando de novas formas de se expressar e de interrogar e fazer vacilar as normas. Hoje, a drag tem uma estética própria, não é apenas um homem que quer parecer uma mulher e nos dizer da fragilidade desse binarismo, é uma expressão artística que possui linguagem, coletivo, há algo que se transmite entre as mais antigas e as mais jovens. Hoje, pessoas trans fazem drag, héteros cisgêneros fazem drag. Ressalto: drag não é uma identidade. A drag mantém em sua performance o efeito paródico, exagerado e extravagante! A drag subverteu o próprio termo que originalmente a designava, se apropriou da partícula e dela fez um uso, nada precisa ser limitador. E, ao temperá-lo com humor, fica ainda melhor!


Retomo a pergunta do início do texto. Parece que rimos muito em Quanto mais quente melhor de algo familiar, das normas do binarismo, conhecido, reiterado e repetido por cada um de nós, rimos da verdade que sabemos debaixo dos panos e que se demonstra inconsistente. É como se soubéssemos de antemão de seu puro efeito de semblante, é possível equivocar e verificar que isso não é aquilo e que aquilo não é isso, e rir de seus embaraços. Ao mesmo tempo que sabemos, enquanto espectadores, quem são os personagens, nos enredamos no efeito talvez chistoso ao qual somos convocados, pelas gags, por saber o que os outros personagens não sabem. Capturados e alterados, nos deixamos guiar pelo prazer que o humor nos proporciona. Em sua forma cômica e paródica, o filme nos indica a leveza e o humor para se questionar as normas. Nada de uma guerra dos sexos, ou de uma substituição do gênero pelo sexo. Montar para desmontar!


Voltando ao filme, ao chegarem ao balneário onde vão cantar, Daphne perde o sapatinho diante de um conjunto de milionários ricos, que assistem à chegada das moças da varanda do hotel. Osgood Fielding III entra em cena e lhe calça os pés. Ao se apresentar, ela diz: “Cinderela segunda”. O ator é o comediante Joe E. Brown, conhecido pelo público brasileiro como Boca Larga. Uma nova dupla se forma no filme. O milionário que já terminou diversos casamentos acredita ser um incorrigível conquistador, ao mesmo tempo que se preocupa com o que sua mãe pensará dele, já que irá se casar novamente. Daí em diante, uma série de situações vão se colocar para os músicos. Joe finge ser um milionário para seduzir Sugar; Daphne tenta, ou não, se desvencilhar das investidas de Osgood. Duas cenas acontecem simultaneamente, a do casal no iate e o casal dançando tango, todo o tempo um paralelo é colocado. No tango, Daphne conduz o casal; ao final, a pista está vazia, apenas o casal ainda dança, e ocorre o corte para os músicos vendados. Se sabemos que no iate os beijos de Marilyn/Sugar valem mais que o divã do professor Freud com quem o falso milionário celibatário tratou de sua relação com as mulheres, não temos como saber com certeza se houve, no caso de Daphne, um beijo, mesmo que no quarto do hotel, tocando maracas, ela diga que foi pedida em casamento e se casará com um milionário, parecendo ter se divertido muito em seu encontro. Joe o sacode e diz ser impossível, como se fazendo lembrar a Daphne que ela é um rapaz. “I’m a boy, I’m a boy, I’m a boy....”, Jerry repete para si mesmo numa tentativa de convencimento. Essa frase cadenciada, ao ser repetida, surge como uma tentativa de que algo volte aos trilhos.


Um fato é inegável: ao se passarem por mulheres, marcas indeléveis são deixadas nos dois músicos. Um incorrigível conquistador barato se deixa apaixonar pela fragilidade que possui a femme fatale Sugar, o controle antes acreditado por ser um homem se ausenta, surgem novas nuances, regiões desconhecidas de seu ser são acionadas por meio dessas mulheres inventadas. Jerry pode ser Daphne, o nome feminino não precisa derivar de seu nome masculino (que seria Geraldine), há algo do feminino que abre veios, talvez possamos dizer, longe de levarmos a personagem para o divã, que isso diga do mais íntimo e infamiliar do ser de Jerry.


A psicanalista Clotilde Leguil, em seu livro O ser e o gênero – homem /mulher depois de Lacan, traz um belo comentário sobre o nosso filme de hoje. Ela o toma como partida para interrogar o ser e o gênero em sua insustentável leveza com relação ao desejo. Em termos de gênero, parece interessar muito mais à psicanálise lê-lo como aquilo a que o sujeito corre atrás tentando ir ao “encontro de alguma coisa de seu ser sem nunca sê-lo totalmente.” (LEGUIL, 2016, p. 40) Assim, ser homem ou ser mulher confronta a cada um aquilo que ele não sabe, no mínimo vai em direção àquilo que ele não pode saber antecipadamente sobre si mesmo. A perspectiva do inconsciente faz do sexo o lugar de um questionamento, faz com que o sujeito vá inventar sua relação com o gênero, a partir da experiência do desejo. Em seu texto, ela ainda nos indica que os gêneros homem e mulher não funcionam como categorias determinadas do ser, já que o próprio ser não é imutável. Propomos uma questão para outro momento: as normas de gênero, por seu peso, não poderiam ser um obstáculo ao próprio ser? Para não filosofar demais, hoje seguiremos com o humor e a leveza como efeito que ele é capaz de produzir em nós.


E o grand finale! Umas das cenas épicas da história do cinema de comédia. Os quatro numa pequena lancha rumo ao iate que lhes permitirá fugir da gangue das polainas. Hora do encontro e confronto final das personagens, cada um fará sua escolha. Sugar escolhe seu destino de só se apaixonar por saxofonistas, a verdade já estava dada, não importando o semblante, as personagens interpretadas por Marilyn e Tony Curtis se beijam no banco de trás e o barco acelera. Na frente, Daphne e o milionário apaixonado: “Não posso me casar com você. Não sou uma loura de verdade!”, “Não tem importância”, “Eu nunca vou caber no vestido de noiva da sua mãe!”, “Nós o reformamos.” “Eu fumo como uma chaminé!”, “A gente se acostuma com isso também.”, “Tenho um passado terrível. Durante três anos eu vivi com um saxofonista!”, “Eu te perdoo”, “Não posso ter filhos!”, “Adotaremos um.”, “Mas você não está entendendo, Osgood? Eu sou um homem!”, “Ninguém é perfeito!”.


A frase final provoca o riso, mas convoca ao questionamento. É preciso interrogar e contextualizar a noção de perfeição no filme que se passa em 1929 e que foi produzido em 1959 – o que talvez não seja tão diferente dos dias atuais. Poderíamos evocar, para não nos deslocarmos muito do tempo em que se passa nossa história, o personagem Grande Gatsby, de Fitzgerald, que representa o sonho americano, o self-made man, o homem que faz a si mesmo. “Mas eu sou um homem”, diz Daphne, revelando o impossível da relação entre os dois. Porém, quando Osgood fala “ninguém é perfeito”, ele faz cair o ideal de perfeição desse homem, que se torna falho e lacunar; assim, algo naquilo que vacila pode surgir, até mesmo o encontro. Mas peraí! “Eu sou um homem”, diz Daphne, de modo que podemos perguntar: é ela quem está performando o masculino ou é Jerry quem performa o feminino? Well, no body is perfect! Nenhum corpo é perfeito!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.


FREUD, S. O humor (1927). In: FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996a. p. 163-169.


FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905). In: FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de janeiro, Imago. 1996b.


LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 238-324.


LEGUIL, Clotilde. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.

 

Este ensaio foi escrito por Rodrigo Almeida, psicanalista e integrante da coordenação do núcleo de investigação em psicose do IPSMMG, mestrando em psicanálise pela UFMG pesquisando arte, estética e transexualidade, para a obra "Quanto Mais Quente Melhor" (Some Like it Hot, Billy Wilder, EUA, 1959), na faixa de programação Cinema & Psicanálise, no dia 16 de Junho de 2023, como parte da mostra "Montadas: Arte Drag no Cinema".

 

Sobre o autor

RodrigoAlmeida é psicanalista, um dos responsáveis pelo Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Psicose, do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais; mestrando em Psicanálise pela UFMG, sobre o tema da transexualidade



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