*notas e esboços sobre Os anos de chumbo de Margarethe von Trotta
por Carla Italiano
1.
É difícil falar de Margarethe Von Trotta sem convocar a expressão "Novo Cinema Alemão". Um capítulo da história do cinema ocidental talvez ainda pouco investigado em sua magnitude nas bandas de cá, emergindo em meados dos anos 1960 e se estendendo por quase duas décadas, na esteira da nouvelle vague francesa e dos cinemas novos ao redor do mundo, com suas reivindicações de novas expressões artísticas, de uma inventividade formal aliada a contundência política, em modos de produção relativamente anti-industriais. Alguns nomes se destacam, uma parte desses tendo alcançado amplo reconhecimento internacional, como Rainer Werner Fassbinder, Alexander Kluge, Werner Schroeter ou Helma Sanders, outros permanecendo mais circunscritos ao contexto alemão e/ou europeu, como Rosa von Praunheim ou Volker Schlöndorff.
É junto a Schlöndorff que Von Trotta dirige seu primeiro longa-metragem, após uma carreira já consolidada enquanto atriz de várias obras desse emergente cinema alemão. Atuou em mais de quinze títulos até o início dos anos 1980, incluindo os trabalhos iniciais de Fassbinder, por exemplo. A Honra Perdida de Katharina Blum (1975) é seu longa inicial, seguido de O Segundo Despertar de Christa Klages (1977), o primeiro que dirige sozinha. Mas a consagração enquanto realizadora vem com este Os Anos de Chumbo (1981), premiado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza daquele ano.
O título Anos de chumbo, em português, se aproxima do nome original, uma situação distinta do mercado estadunidense, no qual o longa foi lançado com outro enfoque: The german sisters (as irmãs alemãs) ou Marianne and Juliane. Mudança que desloca a atenção central de um período histórico desafiador (pesado, como chumbo) para a relação entre duas mulheres, algo que evoca outros de seus filmes também dedicados airmãs: o anterior Sisters, or the Balance of Happiness (1979) e o posterior Three Sisters (1989). Mas o protagonismo de mulheres, as nuances de diferentes relações femininas e a maneira como essas se entrelaçam a aspectos sociais e históricos são elementos recorrentes em sua filmografia. Dentre os vários exemplos, vale sublinhar duas biografias de figuras inspiradoras: Rosa Luxemburgo (1986) e Hannah Arendt (2012).
2.
Ainda que o roteiro de Os anos de chumbo não se baseie diretamente em eventos reais, a história que move o longa foi inspirada pelo encontro da diretora com uma mulher, cuja irmã - acusada de terrorismo - havia falecido na prisão alemã de Stammheim. Trata-se das irmãs Christiane e Gudrun Ensslin. Gudrun teve uma atuação como militante alemã e foi uma das integrantes do controverso grupo de luta armada de extrema esquerda RAF (Red Army Faction), também nomeado pela mídia como grupo Baader-Meinhof (ou "gangue", o que já revela um viés tendencioso), atuante na Alemanha ocidental do início dos anos 1970. Após se envolver com o co-fundador do grupo, Andreas Baader, Gudrun foi influente na politização das crenças de viés revolucionário anarquista que transformariam o grupo. No filme, que mantém como uma espécie de pano de fundo os fatos da vida pessoal e pública de Gudrun, eis que surge a personagem de Marianne. Não é o seu ponto de vista, no entanto, que guiará os eventos da narrativa, e sim a de sua irmã, Christiane Ensslin - que encontra o seu duplo na personagem de Juliane. Tal perspectiva é reforçada pela dedicatória do filme, que surge no canto da tela, ainda no primeiro plano da obra: "Para Christiane". É ao lado de Juliane que começamos e encerramos o filme, em uma circularidade visual/temporal que só evidencia o desejo - que move toda essa empreitada fílmica - de construir pontes entre presente e passado(s), iluminando-os mutuamente.
3.
Das muitas possibilidades de entradaa Os anos de chumbo, destaco os 3 pontos abaixo, interconectados. Eles surgem sob influência do instigante artigo de perspectiva feminista de Lisa DiCaprio "Baader-Meinhof ficcionalizado", publicado na revista Jump Cut ainda em 1984, alguns anos após o lançamento do filme.[1] E também convocam o contexto da retrospectiva da obra da diretora, O Cinema de Margarethe von Trotta, realizada em 2018 no Rio de Janeiro.[2]
Primeiro ponto: a elaboração de uma relação íntima e complexa entre mulheres enquanto núcleo narrativo do filme. Uma recorrência na obra de Von Trotta, essa elaboração se volta aqui para a dimensão psicológica dos laços entre duas irmãs no decorrer de anos, despertando sentimentos tão intensos quanto contraditórios: amor, cuidado, competição, abuso, compaixão. As diferenças entre as duas são a todo momento evidenciadas. Juliane é integrante do movimento de liberação feminina e uma das editoras de uma revista feminista, gestada coletivamente. Marianne é militante de esquerda radical, taxada como terrorista pela sociedade. Enquanto Juliane possui uma vida planejada, em um cotidiano calcado no lar construído com seu companheiro e no trabalho como jornalista, Marianne vive na clandestinidade, tendo deixado para trás uma vida de esposa e mãe (e filha, irmã, cidadã…) em prol da transformação revolucionária.
Segundo ponto: o embate entre ideais de sociedade e modos distintos de luta. Questão que pode ser entendida como macropolítica, e que se vê aqui personificada na vida das personagens. As irmãs são movidas por uma indignação - de cunho moral - compartilhada desde uma jovem idade frente ao passado nefasto da Segunda Guerra Mundial, em uma inquietação que aflora na esteira do maio de 1968 na Europa. Tal angústia as levou à necessidade de agir por mudanças sociais concretas em prol de igualdade, mas por caminhos opostos. Em termos emocionais, Marianne não demonstra arrependimentos, suas motivações são opacas, beiram o insensível; ela tem os olhos voltados para o horizonte de uma sociedade porvir, alcançável unicamente por meio de ações, não de ideias, como declara ao acusar sua irmã. Já Juliane está enraizada no agora do cotidiano, no seu trabalho de formiguinha em diálogo com mulheres de diferentes camadas sociais, às voltas com um legado de memórias e experiências traumáticas, pessoais e partilhadas coletivamente. Como espectadoras(es), somos inicialmente induzidas(os) a seguir os passos talvez mais comedidos de Juliane, a compartilhar a sua visão da realidade. Mas a perspectiva do filme em relação a Marianne também se transformando ao longo do filme, com uma maior humanização após testemunharmos a sua gradual destruição no interior da prisão. Ao mesmo tempo em que isso escancara o caráter perverso da perseguição e do abuso conduzidos pelo estado em seu afã anti-socialista. Como aponta Lisa DiCaprio: "No auge da atividade da Baader-Meinhof, de aproximadamente 1969 a 1977, o estado alemão se envolveu em escutas telefônicas maciças, intimidação e assédio aos radicais. Mais de 300.000 membros da esquerda foram interrogados. Muitos entre aqueles que se recusaram a colaborar foram perseguidos por atividades com as quais tinham profundo desacordo. A maioria daqueles cujas vidas foram tocadas pelo grupo Baader-Meinhof nunca mais foram as mesmas".[3]
4.
O que nos leva ao terceiro ponto: como o filme revela a difícil relação entre passado e presente na Alemanha. Duas camadas de passado são convocadas mais diretamente. Uma mais distante, mas que deixa sua marca direta nessa geração das jovens personagens (e na da diretora): o passado do genocídio em massa perpetrado pelo nazismo, do absurdo que simboliza o Holocausto em sua magnitude de perseguição e apagamento histórico. E como a geração seguinte deve se haver com tais atos, efetuados em nome do seu próprio país. São memórias compartilhadas por Von Trotta, que teria a mesma idade das protagonistas, e que relatou ter memórias infantis dos bombardeios durante a Segunda Guerra. Esse passado aparece de maneira recorrente através das imagens de arquivo de abertura dos campos de concentração, projetadas em cena em diferentes momentos e assistidas pelas personagens. Esse arquivo documental de natureza brutal torna-se um mote disparador, a nível narrativo, para as reflexões das personagens e do filme.
Já a segunda camada de passado é mais imediata, a da luta armada revolucionária "terrorista", que reflete, no início dos anos 1980, os acontecimentos da década passada. Uma luta que escancara o caráter persecutório do Estado alemão ocidental em seu aparato de censura, como registrado na parte final do filme, após a prisão de Marianne - culminando em sua morte sob circunstâncias suspeitas, com fortes indícios de um assassinato perpretado pelo Estado, algo que reverbera a morte real de Gudrun Ensslin e seus companheiros encarcerados. O filme não faz exatamente um julgamento da personagem de Marianne, do seu ideal de sociedade ou modo de luta; se seus métodos estavam "certos" ou "errados", pouco importa. O que importa são as origens e consequência desses atos e o que eles revelam sobre a sociedade alemã na qual se vive.
5.
A sequência final do filme parece sintetizar todas essas questões. O filho de Marianne, Jan, é quem sente na pele - muito literalmente - as consequências das gerações que o precederam, dos atos de sua mãe, do legado da Segunda Guerra. E o gesto que finaliza o filme é sua ordem a Juliane para que esta lhe conte tudo, que ela obedece. Um gesto que quiçá sinaliza uma mudança do rumo, uma vez que é um imperativo de transparência. O que não significa que tudo se resolverá dali em diante, seja para a criança ou para sua geração - algo que, a essa altura, já sabemos ser impossível. O que essa cena parece revelar, e que se coloca em curso no decorrer do filme, é um trabalho contínuo e incessante de luto. De uma elaboração de um passado para que seja possível aprender, seja para que não mais se perpetue - como o Holocausto -, seja para preservar a memória de quem se foi. O dever da memória a nível também coletivo, não só pessoal, mas de todo um país.
Para finalizar, convoco as palavras de Von Trotta, que parecem condensar o que busquei esboçar nessas breves notas: "Pessoalmente, vejo muito poucas chances de explodir o complexo de poder estabelecido pela aliança entre economia e ciência; e acima de tudo, não vejo nenhum movimento no horizonte político atual capaz de alcançar isto (...). Naturalmente, luto contra ele apesar de meu ceticismo; pois é certo que aqueles que não oferecem resistência já estão derrotados. Propor novas idéias é o dever da arte. Da mesma forma, duvido que seja possível colocar em prática estas idéias utópicas. Mas porque estou viva, eu luto".
[1] Jump Cut, no. 29, Fevereiro 1984, pp. 56-59. Disponível em: https://www.ejumpcut.org/archive/onlinessays/JC29folder/GermanSisters.html#1n. Acesso em 4 abril 2022.
[2] Informações disponíveis em: http://doctela.com.br/von-trotta/. Acesso em 4 abril 2022.
[3] Em: Jump Cut, no. 29, 1984, pp. 56-59. Disponível em: https://www.ejumpcut.org/archive/onlinessays/JC29folder/GermanSisters.html#1n. Acesso em 4 abril 2022.
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