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Os sons do tempo em O Ponteiro da Saudade

por Vítor Miranda

A história de Judy Garland sempre foi muito associada às suas habilidades vocais. Apesar de não ser uma recordista de grandes alcances, era dona de uma voz única e de personalidade, que transmitia sem esforço as emoções de suas personagens e da própria atriz. O Ponteiro da Saudade (Vincente Minnelli, 1945) representa o primeiro filme em que ela não canta em nenhuma cena. Dos seus mais de 40 trabalhos creditados isso aconteceu apenas outras duas vezes: Julgamento em Nuremberg (1961) e Minha Esperança é Você (1963). O importante desse ano de 1945 é que a sua carreira também passava por uma transição vocal e de personalidade: de 1937 até aqui foram “seus anos inocentes”, em que seus papéis e sua voz externalizam a persona da “girl next door”, a garota vibrante e identificável. A partir de 1942 seus papéis foram ficando cada vez mais adultos culminando na construção de imagem vista em Agora Seremos Felizes. Em que Judy ainda mantém a sua delicadeza e inocência, porém agora as personagens tinham conflitos mais profundos e cenas mais dramáticas, culminando enfim em seus papéis dolorosos no final dos anos 50 e 60.


Neste papel ela interpreta Alice Maybery, uma secretária que tem um encontro fortuito com um soldado em Nova York interpretado por Robert Walker, onde passam 24 horas nesta descoberta da cidade e do próprio relacionamento, um amor marcado pelas batidas do relógio que nomeia o filme: ele precisa pegar um avião para a Europa para lutar na Segunda Guerra Mundial no dia seguinte.


Nova York é uma terceira personagem no romance, o diretor Vincente Minnelli constrói um retrato em estúdio detalhado da metrópole cosmopolita, com planos sequência extravagantes desde a primeira à última cena, construindo uma ambientação realista que é essencial para ligar os personagens a esse sentimento de urgência amorosa presente durante todo o filme.


A paixão dos personagens acontece no ritmo de Nova York: entre buscas, desencontros, madrugadas viradas e transportes públicos. O primeiro sinal claro de interesse se apresenta no momento em que o soldado Joe Allen persegue correndo o ônibus que Alice está indo embora, cena que remete ao musical Agora Seremos Felizes, ele com muita dificuldade escuta o ponto de encontro que o relacionamento se desenrola: o relógio. Outra cena em que a cidade invade a ação é na metade do filme, no momento em que eles se perdem, o entra e sai dos metrôs e o desespero da busca que culmina exatamente no mesmo local que representa a passagem do tempo.

Apesar de não ser um musical existem momentos muito melódicos, onde o som é evidenciado. Em uma cena no Central Park, Alice diz “Escute os sons da cidade” a melodia da trilha sonora invade a ambientação realista noturna e evolui gradualmente até o primeiro beijo. Uma cena típica das obras de Minnelli: a emoção dos personagens irradia dos atores e se esvai em um momento musical. Na decisiva cena do casamento, os sons barulhentos da cidade impedem que o casal escute os votos matrimoniais e não é inserida nenhuma trilha sonora, resultando em um momento de frustração emocional de Alice, que exclama “foi tão feio!”. Essa cena expressa um pouco de uma sequela da Segunda Guerra Mundial nos modelos ideais de tradição moral da sociedade ocidental. Como se o mundo urbano em que “todas as casas serão iguais como caixas” varressem completamente os ideais utópicos dessa instituição casamento.

Afinal Alice, assim como no romance inglês Desencanto (David Lean, 1945), poderia muito bem já ser uma mulher casada, informação que o filme trata com certo constrangimento, provavelmente por conta da censura Código Hays, que impedia o final feliz para uma mulher adúltera. Essas convenções pouco importam frente ao amor verdadeiro e o encontro de almas: o leiteiro interpretado por James Gleason e sua mulher na vida real Lucile Gleason, no último de nada mais nada menos que 17 filmes juntos, representam uma imagem de um futuro possível para o casal de protagonistas caso a guerra não o leve para sempre.


Durante as filmagens do filme, Judy e Vincente Minnelli se apaixonam e se casam. Podemos dizer que essa sinergia da vida real está presente no filme, Judy nunca foi fotografada de forma tão bela no p&b e sua atuação naturalista em conjunto com a postura tímida e gentil de Robert Walker fazem de O Ponteiro da Saudade um romance único repleto de cenas que ficam na memória.


Certos momentos “escondidos” do filme impressionam: enquanto estão na corrida contra o tempo - e a burocracia - para se casar, Judy observa atentamente por alguns segundos uma moça vestida assim como ela enquanto está na fila de espera para o exame de sangue, evidenciando a experiência universal daquele casal. Assim como uma das últimas cenas do filme, em que Joe e Judy tocam a cabeça de uma criança, em um momento de esperança após o imponente plano sequência final após a despedida.


Na cena inicial, Joe chega na estação em um plano sequência de grua filmado de cima em que ele aparece no meio de uma multidão de pessoas. No final, Alice, após se despedir de seu recente marido, esperançosamente caminha pela mesma estação em um plano feito pelo mesmo ângulo e sua figura pouco a pouco desaparece pela multidão de rostos e histórias daquela estação. Rostos e histórias que parecem descrever muito o zeitgeist deste último ano da guerra que teve profundas consequências sociais e culturais nas décadas seguintes. E The Clock se apresenta com esse mediador inevitável de nossas relações: o tempo.



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