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Escravas do desejo - ou dos manequins e a malha social.

[por José Ricardo Miranda Jr.]


Estamos no espaço de um apartamento, um ateliê, um ambiente de criação humana. Um cômodo repleto de corpos inanimados – restos de manequins. Alguns estão inteiros, outros pela metade, outros são apenas membros: braços cabeças, pernas. São partes que macabramente remetem à anatomia humana e que ocupam quase todo o lugar, lugar a um só tempo caótico e equilibrado, perturbador e belo.


Essa disposição de fragmentos, pela sua disposição no espaço, parece “aleatoriamente calculado” e, contraditoriamente, de uma “harmonia (aparentemente) não calculada”. Descreve-se nesse espaço a dramaticidade de figuras em profusão, possibilitando ao olhar da câmera vagar perdido por uma multidão de corpos, seu silêncio e seu isolamento coletivo. Cada parte narra algo em sua individualidade, mas é o coletivo que ilustra o grande túmulo, no qual todas essas imagens individuais se tornam uma grande imagem, um contexto. É em meio a esse panorama de partes de corpos de manequins que a cena propõe uma ruptura – o olhar da câmera encontra, primeiramente, uma mulher que não faz parte dos bonecos inanimados andando entre eles com absoluta naturalidade, como se pertencesse aquela dinâmica. E em seguida encontramos aquele que assassinará a mulher, a fará uma vítima e igual e semelhante aos manequins espalhados.


A mulher em questão, Nancy Ashton (Patricia Huston), a futura vítima do assassino é um elemento, ou antes, uma figura destacada do contexto do manequins (por mais que se sinta à vontade nele) pois apresenta propósito e movimento, o que a diferencia das demais imagens no ateliê… com exceção de uma. Um elemento definitivo que a destaca para além de ser a imagem de um humano, é a sua função objetiva, seu papel a ser desempenhado socialmente – ela é uma artista que altera e dota de função os demais manequins preparando-os ou restaurando-os para o uso. No entanto, ela em breve irá se tornar parte desse coletivo silencioso, assim que perde sua “função social” (figura 1).

Figura 1: Personagem integra se torna parte dos manequins ao perder sua "função social", sem identidade e abandonada.


No universo de Escravas do medo (Experiment in Terror, EUA, 1962) a existência objetiva de um personagem na narrativa depende da função que esse exerce no mundo, seja essa gerar o caos e/ou reestabelecer a ordem. Sem um papel a desempenhar os corpos fazem apenas fundo, sem identidade e abandonados pela narrativa.


O segundo elemento citado, o assassino, se disfarça, se tornando parte do fundo (Figura 2), se esconde entre as figuras inertes e sem movimento, ele parece integrar o contexto, mas se trata apenas de um disfarce, existe uma clara função para sua presença ali, seu papelo, aquilo que o dá movimento, destaque e uma clara sensação de ameaça de mal escondido, que se confunde com elementos do dia a dia - a perversidade invisível ao olhar despretensioso.

Figura 2: O assassino escondido entre os manequins para levar à cabo o plano de assassinato.


O espaço e o personagem


A maneira como a cena descrita acima é encenada se assemelha a maior parte do cinema de Blake Edwards, seja no filme “Um convidado bem trapalhão” (The Party, EUA, 1968) no qual o personagem Hrundi V. Bakshi (Peter Sellers) tenta se misturar aos convidados de uma festa bastante exclusiva (a qual ele foi convidado por engano) e, no processo, gera caos e desordem, como se aquele espaço fosse um organismo vivo, uma máquina de precisão que precisa expulsar o intruso antes que seu fino equilíbrio seja destruído pelo corpo estranho. Personagens como Bakshi são comuns ao cinema de Edwards, eles são elementos destacados de seu contexto e que ameaçam o ambiente exatamente por serem indivíduos deslocados. Personagens como Nadia Gates (Kim Basinger) e Walter Davis (Bruce Willis) levando caos a um museu e a um restaurante, entre outros locais de “ordem”. Esse elemento do caos é comum ao cinema de vários cômicos. A exemplo do personagem Carlitos de Charles Chaplin, os personagens de Edwards desestabilizam seu ambiente, seja em uma comédia ou em um neo-noir como é o caso de “Escravas do medo”[1].


No caso deste último filme, o elemento de ordem que se converte em desordem é a própria cidade de São francisco. Ou antes a aparência das ruas, pontes e prédios como um lugar de civilidade. A cidade é apresentada como um elemento ordenado e regulamentado para sustentar a sensação de segurança dos que a habitam. É nesse contexto que Kelly Sherwood (Lee Remick) terá todas as suas certezas postas em cheque. A personagem é abordada pelo sádico Red Lynch (Ross Martin) dentro de sua própria casa. Tem início um jogo psicológico entre Sherwood e Lynch que tenta obrigá-la a roubar dinheiro do banco aonde trabalha. A cidade apresentada como um espaço de controle, com diversos sinais e signos de ordem nas placas e sinais é também repleta de sombras e, na figura do chantageador revela seu lado mais cruel, capaz de desestruturar a existência de seus habitantes de maneira violenta e aleatória.


Entra em cena o personagem John Ripley (Glenn Ford) um agente do FBI incumbido de resolver o caso. Cada um desses personagens são postos em movimento na narrativa a exemplo dos personagens em meio aos manequins – eles existem e agem no mundo a partir de suas funções sociais. Em outras palavras, eles são o que fazem. Ripley está em cena sempre na dimensão de um agente, sua vida particular inexiste no filme, pouco sabemos de seus desejos, fora de suas funções. O pouco que nos é revelado sobre o antagonista, Red Lynch, também diz respeito ao que é necessário para encontrá-lo e prendê-lo, seu funcionamento “vetorial”. Nos é apresentado que é um personagem com a habilidade de se esconder e que entende as dinâmicas de movimentos de massa como um bom elemento de disfarce. O único ponto que parece estranho ou contraditório no personagem é seu relacionamento afetivo com Lisa Soong (Anita Loo) e seu filho, mas nunca nos é dado a ver ou acessar essa relação. Ela existe como mais um elemento da investigação.


Porfim, temos a personagem Sherwood e sua irmã Toby (Stefanie Powers). Pouco nos é apresentado de seus desejos e aspirações embora nos seja apresentada a força dos vínculos fraternos que as unem. No entanto, esses elementos são apresentados de modo a explorar a mecânica do suspense e não como elementos de exploração dramática em si. O diretor explora com habilidade o gênero no qual se filia, carregando consigo uma longa tradição na “comédia leve” e o marcante estilo que ele molda desde o período televisivo quando dirigia séries de Police Procedural[2]. Poderia se afirmar que “Escravas do medo” é um dos grandes procedurals da década de 1960, é detalhado, objetivo, cerebral e, poderia se afirmar, até mesmo frio em relação aos personagens. Essa característica o diferencia de filmes posteriores do mesmo sub-genero como “Os intocáveis” (The Untouchables, EUA, 1987) de Brian De Palma, “Silêncio dos inocentes” (Silence of the Lambs, EUA, 1991) de Jonathan Demme, “Memórias de um assassino” (Salinui chueok, Coreia do Sul, 2003) e “Zodíaco” (Zodiac, EUA, 2007) de David Fincher e, até mesmo de filmes noir como “Laura” (Laura, EUA, 1944) de Otto Preminger que exploram as figuras que investigam crimes, criminosos e que tem suas vidas transformadas por isso. Nesse sentido “Escravas…” talvez seja o procedural mais “puro” de todos esses. É uma obra sobre as funções sociais que definem e descrevem os personagens e seus métodos, assim como das interações que formam extratos diversos da sociedade – a classe média, os que vivem à margem e a personificação da figura da lei.

Figura 3: A figura do assassino invisível, escondido e camuflado no ambiente, nas sombras.


Eis o encanto do filme de Edwards – ele examina a mecânica dos movimentos, dos espaços e da cidade com uma profunda compreensão da lógica dos papéis e da malha social em um ambiente urbano. Trata-se de uma observação quase matemática sobre a convivência nas cidades em que os papéis sociais se sobrepõem e colidem, um exame do drama da existência coletiva. Por esse motivo, tudo o que não é movimento, ou seja, dotado de função, é fundo e contexto para o drama em primeiro plano… como os manequins do ateliê.


Se nas suas comédias o cinema de Blake Edwards reflete sobre aqueles que são incapazes de se camuflar no ambiente ou esconder no espaço, demonstrando enorme simpatia por eles como é o caso do inspetor Clouseau (Peter Sellers), em seu suspense ele analisa a outra faceta dessas figuras que corporificam a exceção - os não pertencentes. No universo tensionado de “Escravas do medo” nada é tão perigoso quanto um outsider perverso capaz de se fazer invisível. Nada é tão ameaçador quanto um homem capaz de se camuflar e manipular o meio. Essa questão aparece diversas vezes no personagem de Lynch. Uma figura que ora se passa por manequim, ora por uma senhora idosa ora se camufla em meio a um estádio em dia de jogo ou nas sombras de um lar. É a impossibilidade de vê-lo, de destacá-lo da comunidade que o torna tão perigoso. Como encontrar em meio a tantos corpos, em meio à massa de transeuntes a ameaça verdadeira?


Eis o ponto que se revela em todo o cinema de Edwards, como filmar a exceção? Como filmar o que se destaca do fundo? Primeiro se gera/analisa o fundo, o contexto. A personagem Kelly Sherwood existia em um contexto e foi arrancada dele pelas mãos de seu perseguidor e é filmada sempre em uma espécie de deslocamento do seu ambiente. Sempre existe um fora, um elemento externo que desequilibra sua participação, que a separa de seu contexto. É o caso do fim do filme quando a vemos em um estádio em meio ao contexto de um jogo. Ela se confunde com a multidão que assiste à partida animada mas, ao mesmo tempo, está deslocada dessas pessoas, elas são ruídos de fundo. Acompanhamos, por meio dos olhares dos agentes do FBI que a personagem à distância e é perceptível que está em dois lugares ao mesmo tempo – um físico e o outro psicológico/emocional.

Figura 4: Dois momentos da personagem Kelly Sherwood em seu trabalho.

As cenas no banco (figura 4), seu espaço de trabalho, também demonstram esse tensionamento, os planos do diretor a destacam, esteja em primeiro plano ou segundo. Ela é um elemento central ou diferenciado do plano conduzindo a cena para outro contexto que não aquele cotidiano de um trabalho corriqueiro.


Somos levados de volta mais uma vez aos manequins do ateliê, toda exceção precisa de um contexto do qual se destacar e o cinema de Blake Edwards é exímio em estabelecer – essa ruptura, ou desvinculação do contexto que levam os personagens do próprio papel social e a fragilidade de uma existência pautada por regras rígidas que são destruídas por um gesto ou ação subversivo. É um cinema que nos dá a constatação da fragilidade dos laços de uma condição social que não consegue absorver a contradição e o contraditório e que, por fim é desafiada por ele, tornando-se por fim, sua vítima.

 

[1]“Escravas do medo” é uma obra que cruza várias tendências que formaram o cinema moderno, trabalhando com profundidade de campo alta e elementos do gênero procedural como se popularizou na TV é um filme que cristaliza um gênero derivado do noir que viria a se tornar popular nas décadas seguintes. Acima de tudo é o olhar e sensibilidade do seu diretor que sustentam o filme em seu olhar crítico às dinâmicas sociais e os outsiders que as habitam.

[2] Filmes ou obras que exploram detalhadamente os procedimentos e processos policiais na resolução de casos ou crimes.

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