por Juliana Gusman
Eu me casei no Segundo Cartório de Registro Civil de Belo Horizonte, à rua dos Guaranis, no hipercentro da capital mineira. No mesmo miolo, à rua Guaicurus, também batizada em idioma tupi, celebra-se outros contratos (supostamente) mais efêmeros de relações econômico-afetivas. Aqui, nem a geografia metropolitana separa as novas esposas das velhas putas. Matrimônio e prostituição, afinal, sempre deitaram e rolaram na cama da História. Mas ninguém se apavora com consentimentos conjugais de longo prazo – ganhei presentes, veja só – ao passo que multidões de bem-intencionados se indignam e se alvoroçam com mulheres que honram acordos de dez minutos.
João Borges nos oferece, com seu cinema, uma oportunidade de repensarmos as diferenças aparentemente intransponíveis que deslocam as trabalhadoras sexuais para as zonas imaginárias da não-importância. Para elaborar reaproximações, Rua Guaicurus (2018) procura manifestar o que há de comum e ordinário no território cujo nome, em sentido original, evoca sujeira e vilania, predicados facilmente (e falsamente) associados às atividades que ocorrem por lá.
Preliminares: relatos reais, colhidos persistentemente pelo diretor, originaram um roteiro encenado por uma atriz profissional – Ariadina Paulino, que interpreta uma novata no ramo – e duas “não-atrizes” – as veteranas Shirley Dias e Elizabeth dos Santos. Rua Guaicurus se achega no bacanal contemporâneo entre o documentário e a ficção, roçando em outros corpos fílmicos classificados como “híbridos”. Nem lá, nem cá, falamos de uma vigorosa tendência, entumecida por obras como Branco Sai, Preto Fica (2014) e Mato Seco Em Chamas (2022), de Adirley Queirós (o último, co-dirigido por Joana Pimenta), ou, no panorama da produção regional, o intrigante Baronesa (2017), de Juliana Antunes. Ao pocar barreiras cinematográficas, Rua Guaicurus abala transações espectatoriais. Neste contrato afetivo-econômico de uma hora e quinze minutos, os parâmetros do programa nunca estão plenamente em cima da mesa.
Na verdade, o hibridismo parece ser, em primeiro lugar, uma estratégia necessária às investigações propostas pelo filme, reveladoras de vinculações e saberes potencialmente humanizadores. João Borges erige uma estrutura enunciativa capaz de recuperar (ou recriar) experiências normalmente interditadas por justas desconfianças: as prostitutas sempre foram alvos das câmeras, e quase nunca de maneira lisonjeira. Com frequência, o “ser filmada” esbarra nos limites do consentimento. A reencenação, portanto, é fruto de uma cuidadosa negociação entre o desejo, o receio e a responsabilidade de elevar sujeitos que foram, ao longo do tempo, eliminados da arena pública por assombrar regramentos e posições femininas socialmente instituídas. Quero dizer que a depreciação das meretrizes nada tem de fortuita; discursos estigmatizantes são continuamente mobilizados para que as outras mulheres se contentem com suas próprias prisões. O receio de ser alvejada como puta é uma das ferramentas ideológicas que garantiu, historicamente, o nosso pacífico e bom comportamento. No protagonismo alegórico de Ariadina, Shirley e Beth, tenta-se, então, superar silêncios sem ratificar vitimizações.
Em uma segunda via, o flerte entre a ficção e o documentário provoca e aventa, aí sim, o nosso trato ambíguo com o filme. Rua Guaicurus estremece a indicialidade e a crença diante da imagem. Institui-se uma abordagem capaz de despertar compreensões mais tateantes daquilo que não se coloca somente em evidência, mas em dúvida. A ficção invade o documentário na costura de arcos narrativos bem delimitados e nas dinâmicas de campo e contracampo – uma alternância de planos em sentidos opostos –, impossíveis em uma tomada espontânea. Por outro lado, o documentário invade a ficção quando escutamos uma voz, nos corredores de um hotel, que anuncia: “É um filme, filme de verdade. Depois ele vai passar no cinema”, mas só para nos devolver à incerteza, já que quem se espanta com o aparato de filmagem é Carlos Francisco – de Bacurau (2019) e Marte Um (2022) –, que faz as vezes de um cliente. Outro exemplo: se no início do longa a personagem de Ariadina, a “fogosa Michelle de Montes Claros que faz gostoso”, diz recorrer ao meretrício por causa de uma dor acirrada pelo desamparo familiar, um telefonema carinhoso da mãe, de quem não esconde nada, parece relativizar essas justificativas. Tudo o que se vê e que se fala está sob suspeita. De qualquer forma, sabemos, pelo menos desde Eduardo Coutinho, que pouco importa a autoria real de uma boa prosa: o valor de verdade está em outras esquinas.
Além disso, o teor ficcional de Rua Guaicurus realça a dimensão performática da própria prostituição, nada mais que uma representação da feminilidade voltada para a geração do prazer – certamente mal remunerada e exercida em condições precarizadas, não há o que discutir (aliás, há, escutemos as demandas das putativistas do Brasil). A questão é que ninguém se vende – embora todos se aluguem – para a exploração do capital. O que se oferta, pelo menos por ali, são performances hiperbólicas da heterossexualidade – “Bucetinha Black Friday, tá na promoção!” – para aplacar os ciclos intermitentes de excitação e frustração típicos da sociedade de consumo. Como orienta Beth, já talhada pela prática, “você tem que ter uma cara”, praticar a voz fina de gozo e ensaiar possíveis fetiches com paus de plástico. Ninguém nasce garota de programa. Torna-se.
Na fortuna crítica de Rua Guaicurus, lançado comercialmente somente em 2022 por causa da pandemia de Covid-19, menciona-se uma coisa ou outra sobre as cenas de sexo, o ato inarredável do espetáculo prostibular. Há quem acuse Borges de exageros, como se seu filme almejasse apetecer voyeurismos. A figuração do sexo sempre foi uma tensão para o cinema – ou quase um impedimento ético, se pensarmos que um teórico como André Bazin a colocou no mesmo patamar da figuração, obscena, da morte. Borges, entretanto, parece comprometido em foder tabus.
Este sexo não é só sexo: é ofício. Num metro quadrado de um puteiro, Rua Guaicurus expande universos de criatividade e irreverência. Penetra-se intimidades para valorizar autonomias, destacar habilidades e somar as prostitutas à horda dos proletários de todo o mundo. Na tela e na luta, podemos nos unir.
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