por Sávio Leite
Entrevista com a cineasta Tânia Anaya, realizada por Sávio Leite e publicada originalmente no livro "O Desenvolvimento do Cinema de Animação em Minas Gerais".
Como você tomou conhecimento do núcleo e quais foram os métodos de seleção?
Eu estudava na Belas Artes, fazia desenho. E aconteceu o acordo entre Brasil e Canadá. Então a partir daí vieram alguns professores para cá. O Marcos Magalhães trouxe uma série de informações. E aí eu me interessei porque além das informações, ele trouxe informações também de outra escola que eu não conhecia, que era o National Film Board do Canadá. E eu vi que tinha tudo a ver com a escola de artes. Porque eu comecei em artes plásticas. Meu interesse era em artes plásticas. E quando ele sinalizou com essa escola. Eu estou chamando de escola porque, vamos dizer assim esse instituto, porque lá realmente não é uma escola, mas eles seguem uma linha. E quando ele mostrou então a quantidade de filmes assim feitos por animadores que também tinham um interesse muito grande em artes plásticas eu me interessei. Eles fizeram uma seleção com desenhos e foi aí que eu comecei.
Qual era o conteúdo ministrado nos núcleos? De que maneira se deu o aprendizado da turma? Existiam referências comuns?
Era animação clássica. De desenho. De doze desenhos por segundo. Fotografado duas vezes. Então assim era animação padrão, clássica. Só que não era cartoon. Ou seja, era em cima de desenho. Do seu próprio desenho. Quem tinha um desenho mais realista, mais em cima de desenho realista. Quem tinha um desenho mais infantil, em cima de infantil. E por aí foi. Foi uma animação em cima daquele padrão mesmo de doze por segundo, com todas as leis da física, aceleração e desaceleração. Tudo na mesa de luz. Mas de acordo com a linguagem própria de cada um.
Como profissional, quais foram as maiores contribuições do núcleo para a sua carreira?
Acho que foram duas assim maiores. Veio grande parte da filmografia do National Film Board para cá. Então a gente teve acesso a filmes assim maravilhosos que a gente jamais veria em cinema e raramente em mostra. A gente assistiu todos os filmes do Norman Mclaren, Caroline Leaf, Paul Driessen. De todos esses grandes autores da animação. Isso foi super estimulante, você ver tanta possibilidade para a animação como linguagem. Isso foi uma grande coisa. E segundo, é que a gente acabou fazendo filmes. O segundo trabalho, que já era um trabalho de conclusão, que no meu caso foi um filme de cinco minutos acabou percorrendo muitos festivais. E isso me ajudou a entender melhor o alcance dos trabalhos, a conhecer pessoas.
Em sua opinião, quais foram os principais curtas realizados pela escola de Belas Artes?
Eu conheço pouco. Porque eu fiz graduação e mestrado na Escola de Belas Artes, mas não acompanhei a produção que veio depois. E já tem muito tempo que eu sai da escola. Mas eu acho que ainda continua. Acho que os filmes do núcleo que ficaram prontos. O da Marta Neves e o meu. Que foram os únicos que ficaram prontos em película. Eu não sei te dizer mais se os outros, de pessoas que eu vi depois se eram frutos da própria Belas Artes ou não. Eu não sei te dizer.
Você poderia nos dar um breve histórico das suas formações acadêmicas?
Bom, eu fiz Desenho. Eu sou bacharel em Desenho, pela escola de Belas Artes. E mestrado eu fiz em Artes, na Belas Artes também, com foco em Cinema.
Você acredita que para ser um bom animador ter alguma formação acadêmica é fundamental? Por quê?
Eu acho que tanto para o animador como para o artista não é fundamental. Mas eu acho que a escola traz referências legais, do tipo assim, história da arte, filmografia. Você tem acesso a filmografia legal. Você tem acesso a pessoas que estão fazendo. Então você tem muita troca, eu acho, entre professores, alunos. Nesse sentido.
É possível sobreviver e manter uma carreira apenas como animador em Minas? De que maneira? Com quais limitações um animador lida no seu dia-a-dia profissional?
É dificílimo. É dificílimo. Eu também faço Ilustração. Faço Projeto Gráfico. Faço documentários. Que eu também acabei indo para essa linha de documentários. Trabalho então com institucionais e com documentários. E dou meus pulinhos, porque é muito difícil. Você geralmente tem uma certa estabilidade enquanto está rolando algum projeto. Mas como os projetos sempre também tem um valor muito curtos. Você sempre também tem uma remuneração bem reduzida. Então, é mais amor à causa mesmo. Eu acho que essa coisa de você ver o filme pronto, ver o filme projetado. É a cachaça mesmo do cinema que faz a gente continuar nessa linha. Não é grana.
A acessibilidade à tecnologia necessária foi ou ainda é empecilho para quem quer iniciar uma carreira em Minas Gerais?
Eu acho que sempre é maravilhoso isso porque você pode fazer hoje com muito mais facilidade em casa. Quando eu comecei, para você fazer um filme, você podia fazer ali na mesa de luz, mas depois você precisava de câmera. E era câmera ou 16mm ou 35mm, e depois laboratório. Então era muito caro. Agora você pode fazer em digital. Você pode fazer sozinho. Então isso facilita muito. Tanto que você vê que a produção hoje em dia é imensa. Isso não quer dizer qualidade se é bom, se é ruim. Não estou falando de critério a respeito disso. Mas que eu acho que facilita, com certeza.
Agora tem também por outro lado.Eu acho que é a mesma coisa. Como eu venho das artes também. É aquela coisa, trocou o papel pelo tablet. Eu uso os dois, eu uso papel e uso tablet. Acho que são coisas diferentes, e são. Você chega em lugares diferentes com eles, entendeu?! É a mesma coisa da animação. Eu sou uma animadora que anima ainda de uma maneira tradicional. Mas eu sou super simpática à ideia de usar programas que te facilitem a vida. Depende do que você quer fazer. Cada um traz coisas diferentes. São válidas as duas coisas.
Quando você soube que estava pronta para começar a produzir animações?
Pronta eu acho que não é a palavra. Porque eu descobri muito nova. E quando você é novo você é mais... não digo inconsequente não, mas você é mais otimista. Então você acha que você está pronto pra fazer sempre. (risos) E eu tive sorte. Eu acho que além de ter feito, eu tive sorte no sentido de que o primeiro trabalho que eu fiz, ele foi muito bem aceito. Então isso me deu gás pra continuar a fazer. Porque eu acho que acontece também com outros profissionais, eu vejo às vezes colegas que tem trabalhos bons. Melhores inclusive. Mas que às vezes não tem uma saída rápida. E isso desestimula. E por causa disso você acaba deixando de lado. Então eu acho que tive pouquinho de sorte.
Durante um tempo você trabalhou num estúdio em Portugal. Conte-nos mais sobre esse período. O que essa oportunidade possibilitou agregar para a sua carreira?
Eu trabalhei dois anos no filmógrafo, que hoje é casa de cinema, no filme “Os salteadores”, do Abi Feijó. Eu tinha acabado de terminar o meu filme, o “Balançando na gangorra”. Eu tinha acabado graduação. E fui. Soube que eles precisavam de um animador no Porto. E me integrei na equipe deles. Foi assim super bom porque, eu estava acostumada a trabalhar sozinha, então eu já caí numa equipe que tinha uma divisão de animadores, uma divisão de arte finalistas. Mas não era um grande estúdio. Era um estúdio de porte médio. Ele fez um média metragem. Então assim, foi uma passagem super boa. Foi um aprendizado muito bom. O Abi Feijó é uma pessoa queridíssima como animador, como pessoa. Então, assim, eu fui muito bem recebida. Foi ótimo. Foi uma experiência super positiva pra mim. E hoje eu ainda bebo dessa referência. Por causa de estúdio. Depois, com o filme “Castelo de Vento”, que eu fiz com uma equipe pequena. Mas assim, muita coisa eu adotei da forma como eles organizavam. Aqui também eu continuo adotando alguns procedimentos que quando você trabalha em equipe é preciso. Aprendi bastante com eles.
Quando você decidiu montar a sua própria produtora? De que maneira a “Anaya Filmes” contribui para o cenário mineiro da animação?
Eu criei minha produtora em 2002, porque eu queria fazer filme. E para você fazer filme você tem que estar ligado a alguma produtora. E nos filmes anteriores o tempo inteiro eu sempre consegui através de amigos viabilizar meus filmes. Foi assim com o João Vargas pela Itabira Filmes no “Castelo de Vento”. Com o Rafael Conde no “Agtux”. Então assim tem essa parte toda administrativa que é complicada. Mas o que eu saquei era que precisava me organizar. Eu preciso me organizar legalmente para poder fazer sem ter que ficar toda hora recorrendo. Geralmente os meus amigos tem produtoras que são pequenas. Não é fácil você abrigar o projeto de outra pessoa. Porque tem uma série de questões administrativas de prestação de contas, que é dureza. Então eu achei que o melhor caminho era mesmo abrindo uma empresa. A minha é pequenininha. Ela funciona praticamente só por projetos. Quando eu estou fazendo projetos ela está funcionando. Quando eu estou sem projetos ela está dormindo. Mas foi caminho que eu encontrei de viabilizar, para fazer filme.
Fale de sua produção autoral. Dê um breve resumo sobre a sua filmografia.
Ela é super resumida. No núcleo eu fiz um curtíssima de animação chamado “Mu”, que era pastel oleoso sobre papel. De um minuto e quarenta e cinco segundos. Pelo núcleo também eu fiz o “Balançando na gangorra” de cinco minutos. Lápis de cor sobre papel. Esse eu demorei dois anos para animar. Fiz tudo sozinha.. Duas mil e quinhentas artes finais. Depois disso fui trabalhar com o Abi Feijó, em Portugal. Fiquei dois anos. Voltei. Fiz alguns trabalhos de publicidade, em São Paulo. E aí fiz um curta, “Castelos de Vento”. De oito minutos, 35 mm. Depois uma mistura de documentário com animação, que é um filme com os machacalis , que é o “Agtux”. E projetos. Nesse meio tempo, sempre vários projetos. Eu estou com esse em andamento, que é um longa metragem. E tem um outro projeto, que já tem roteiro, mas que falta preparar para edital, que também é de longa.
Quais são as diferenças entre fazer animações para seus filmes autorais e fazer animações para multimídias, publicidade e videoclipes? Qual desses segmentos mais lhe chama atenção?
Eu adoro videoclipe. Era uma coisa que eu gostava e gostaria de voltar a fazer. O videoclipe tem muito de autoral também. Claro que eu acho que a questão maior aí é se tratar de uma encomenda. Então quando você tem um trabalho encomendado, dependendo da situação você tem um espaço maior ou menor para criação. Por isso que eu acho legal de insistir nessa ciara aí de cinema porque são projetos pessoais que eu estou viabilizando. Agora, trabalhei muito com institucional. Mas no fundo é isso: você está fazendo um trabalho com as suas próprias referências e critérios, e para outra pessoa.
Pra você qual a melhor forma de se trabalhar com animação: coletiva ou individualmente? Por quê?
Depende do seu projeto. Tem projeto que você consegue fazer individualmente. Eu gosto de trabalhar às vezes solitariamente. Eu tenho muito prazer. Eu enfurno, e vou mesmo. Mas tem outros projetos que te demandam essa equipe e que também é outra viagem. Porque aí você vai estar o tempo inteiro em interlocução com outras pessoas. Aí então ideias que você não tinha pensado vem à tona. Eu gosto das duas formas na verdade. Cada projeto demanda um tipo de relação. Mas as duas coisas são bacanas.
Qual foi o filme que trouxe maior visibilidade para o seu trabalho?
O “Ãgtux”, em termos de premiação trouxe mais visibilidade, trouxe mais prêmios. Aliava uma coisa que na época ainda não era muito usual e hoje é, que é o documentário junto com a animação. Ele tem essa pegada que na época foi legal. O “Castelos de Vento”, trouxe uma visibilidade no sentido de que o Anima Mundi adotou o “Castelos de Vento”. Então em todas as mostras, um conjunto de filmes, estava o “Castelos de Vento”. Então foi um filme que rodou muito sem que eu fizesse esforço. E o “Balançando na gangorra”, que foi o primeiro, de uma certa forma foi o que me colocou nesse meio de animação. Foi quando eu conheci mais pessoas, foi quando eu entendi melhor como é que funcionava o trabalho de animação. E cada um foi trazendo um desafio diferente, tipo, o “Balançando” eu fiz em 16 mm. Aí depois de passar em vários festivais, eu entendi que o som do 16mm era muito difícil, e muito ruim na maior parte dos lugares. Aí eu quis mudar de bitola por causa do som. Aí eu já passei pra 35mm por causa do som, pro “Castelos de Vento”. Então cada filme eu fui aprendendo uma coisa. Depois de ficar muito tempo trabalhando no “Castelos de Vento” eu quis trabalhar fora de estúdio. Porque estúdio também, essa coisa de trabalhar muito solitariamente ou com poucas pessoas durante um período muito grande, as vezes cansa também. Aí o “Ãgtux” me abriu a porta para o documentário. Então cada coisa foi sendo importante à sua maneira, assim, em determinada época.
Eu tenho uma opinião pessoal do “Castelos de Vento”, que ele faz parte de um renascimento do cinema brasileiro em si. Porque, na verdade, ficou muito tempo sem fazer cinema no Brasil. Foi depois de 1995 que começou a retomada do cinema. E aí ele faz parte dos primeiro editais que teve. Então por isso , eu acho que, ele faz parte desse renascimento. Você consegue enxergar por essa ótica?
A gente sempre está ligado a essas politicas de governo. E realmente ele foi da primeira leva do Minc. Foi o primeiro edital do Minc. O “Castelos de Vento” foi fruto disso. O tempo inteiro eu acompanho porque eu usufruo disso também. Eu muitas vezes acho super importante também estar ligado a algum movimento para que isso facilite a produção de filmes. Então eu sempre estive ligada à ABCA, que é a Associação Brasileira de Cinema de Animação. A gente sempre esteve em conversa com a Sav (Secretaria do Audiovisual), com a Ancine. Porque é através disso que realmente a gente consegue produzir e hoje tem tantos editais. Tem muitas pessoas batalhando nessa frente. O “Balançando na gangorra” eu fiz sem verba nenhuma. Fechada em casa e sem verba. É a pior forma de se fazer, talvez por isso também eu tenha saído do Brasil nessa época. Porque eu vi que era impossível continuar fazendo dessa maneira. E quando eu voltei, então já tinha o primeiro edital do Minc para curta metragem. A gente acaba sempre se organizando nem que seja instintivamente para produzir.
E talvez o longa se encaixe aí também. As condições não são boas porque, ainda hoje, essa briga que continua. Eles continuam a colocar os editais para ficção ao vivo, digamos assim, com imagem “Real”, o mesmo valor que um filme de animação. E você sabe que animação custa muito mais caro. Mas, ninguém quer saber disso. Mas mesmo assim a gente está fazendo. Eu sei muito bem aonde eu estou pisando. Tem um custo isso. Mas se também não é dessa forma, não se faz. Então é sempre essas questões política para o audiovisual.
Em alguns de seus trabalhos você experimenta outros tipos de linguagens para além da animação. Você acredita que essa junção entre a animação e outros formatos cinematográficos possa ser uma forma interessante de se trabalhar um filme?
Sim. Porque eu gosto. Eu, antes de tudo sou cinéfila. As minhas referências... Eu tenho boas referências de animação. Mas eu tenho muitas referências de ficção, de documentário. De qualquer forma é a imagem em movimento e o áudio. Então eu acho muito fácil você cruzar essas linguagens. Muitos filmes tem feito isso. A tecnologia ajudou bastante. O que importa na verdade é a imagem em movimento com o áudio. Eu gosto de experimentar.
Seu documentário Ãgtux recebeu um importante premio durante o International Short Film Festival Oberhausen. Como foi pensada a animação neste filme?
A ideia inicial era inclusive fazer um filme de animação com os índios machacalis. Eu era professora de artes deles. E fiquei muito impressionada com os desenhos. E eles ficaram muito impressionados com a animação. Então a gente resolveu fazer juntos. Só que naquela época ainda era com mesa de luz. E não rolou. O trabalho, essa disciplina de você ficar sentado horas e horas para desenhar. Mas acabou que nós mudamos o projeto e virou um documentário. Mas a partir dos desenhos deles que eu já conhecia, Eu vi e vivenciei essa produção gráfica deles, que é incrível. E foi depois das filmagens que eu resolvi colocar as animações. Então foi um trabalho conjunto de uma certa forma porque era para ser uma coisa, virou outra, mas eu retomei em seguida.
Atualmente, você está com dois projetos de longas metragens aprovados pela lei de incentivo. Como está o desenvolvimento desses trabalhos? Você pode nos adiantar detalhes dessas produções? (história, técnicas, equipe, etc)
Um projeto está com o roteiro pronto, mas falta realmente preparar o projeto para os editais, que chama “Palmeiras do Alto”. Um projeto que se passa no Brasil holandês, na época que o Nassau veio e a comitiva dele veio junto. Então por ali começa esse projeto e tem uma pesquisa histórica muito legal, mas ele, por enquanto ele está só no roteiro mesmo. E agora a gente está no filme, que é o Nimuendajú, que também é um projeto de época. Uma animação de um personagem que viveu no inicio do século XX. Um alemão que chegou no Brasil em 1903 e morreu em 1945. Viveu entre vários povos indígenas. Adotou nome guarani, que é o Nimuendajú. Esse sim já tem roteiro... A gente já está com equipe de arte. Já começamos com a equipe de arte... Nós vamos usar a mesma técnica que o Valsa para bashir (Ari Folman, 2008) usou e que o Walt Disney usou também, que é gravar, filmar. Usar as referências de imagem pra referência de animação. Nós já viajamos pros Guarani de São Paulo. Pra negociar e conversar se eles tem interesse de participar. Eles querem participar. Já fizemos testes. Vamos agora em maio pros Timbiras, Canela e Apinajés. Para também conversar e combinar. E em julho vem o Peter Ketnath, o ator de “Cinema, aspirinas e urubus” (Marcelo Gomes, 2005). Ele que vai fazer o papel do Curt Nimuendajú. Aí ele vai contracenar com os índios. Vai contracenar aqui em Belo Horizonte nos estúdios com os outros atores. E a gente vai usar como referência pra animação. A gente está usando um storyboard onde o roteiro está todo decupadinho. A gente usa o storyboard como referência para a gravação e a gravação como referência para a animação. (risos)
Conte-nos um pouco de como é seu processo criativo desde a concepção da idéia até o produto final.
Depende. Cada caso foi um caso. Depende do interesse da época. Depende da companhia da época. (risos) Assim, nesse caso especificamente, do Nimuendajú, eu comecei a pensar nesse projeto quando eu estava fazendo o filme dos Machacalis. Porque ele foi um dos etnógrafos que escreveu sobre os Machacalis. E quando eu bati o olho no nome dele “Curt Nimuendajú”... Eu falei “Gente... Curt? Alemão. Nimuendajú, guarani. Que figura que é essa?”. Aí foi quando eu soube que figura que era essa eu falei “Nossa!” Esse cara é genial para você abordar a questão indígena de uma maneira que não seja didática. Mas que seja em profundidade e instigante também, porque, era uma pessoa que ao mesmo tempo que ele trazia um embasamento teórico grande, ele foi uma pessoa totalmente autodidata. Ele se integrava nos povos. Ele era batizado, ele se casava. Então teve uma vida muito legal e difícil, porque naquela época os povos indígenas eram de difícil acesso. Então, nesse caso foi pelo nome dele. No caso do “Balançando na gangorra” foi pelo interesse na história do Narciso. Na época eu estudava grego. Estava fazendo uma disciplina na Letras. E essa história é muito linda. Então aí isso foi o primeiro interesse por essa questão. O “Castelos de Vento” foi um conto do Cassius Vieira, que ele me mostrou e eu achei que tinha tudo a ver. Então cada caso é um caso.
Mas em todos os casos você faz um storyboard desses filmes?
Sim. Sempre. Sempre faço storyboard.
Como você pensa o som em seus filmes? Qual a importância que ele exerce na semântica das suas animações?
Isso é fundamental porque inclusive. Meus filmes têm poucos diálogos. E muito da base é a música. E para animar, no meu caso, eu tenho que já estar com o som pronto. Então é a mesma coisa. Durante o processo, quando eu começo a preparar storyboard eu já estou prestando atenção em que música que pode entrar. Já começo a pesquisar esse ambiente musical. E quando eu começo a animar, eu já animo em cima da música. Eu cronometro a música inteirinha. Faço lá minha referência de segundo a segundo. E trabalho a animação sobre a música. Até hoje eu tenho trabalhado com músicas prontas: do Nelson Cavaquinho, do Arnaldo Antunes, do Villa Lobos. E aqui eu já estou de novo com essa inquietação. Mas ainda não encontrei. A primeira coisa que me vem à cabeça é Villa Lobos porque ele também tem uma pesquisa musical que ele fez com uns índios parintintins, que é interessante também. Mas não sei ainda.
No caso do Villa Lobos você teria que pagar direitos autorais?
É. Mas o Villa Lobos é um dos mais fáceis. Porque ele inclusive já institucionalizado, por minuto você paga tanto. E não é muito. É mais fácil que a maior parte dos outros músicos. Cada caso é um caso. Alguns são caríssimos. Varia.
Você faz animação visando algum público específico? Qual?
Eu não faço filmes só para mim. Está claro que isso é um dinheiro que é um investimento público e que de alguma forma tem que ter um retorno. Mas parou aí (risos). Porque a partir daí também é pesquisa de linguagem. Eu acho que, da mesma forma que eu também sou um público, deve ter muita gente como eu que pode gostar dos meus filmes. Então é realmente assim, não é uma coisa que me preocupa. Eu acho que vai ter sempre público. Se você não fizer uma coisa muito hermética. Mas realmente não é uma questão que me preocupa. Apesar de entender que cinema é para o grande público. É uma pergunta difícil de responder. (risos)
Como você percebe a influência da cultura mineira nos seus trabalhos e de outros animadores mineiros? Você consegue enxergar isso claramente?
Não. Eu tenho dificuldade porque, claro, cada um vai fazer filmes e escrever e fazer o que tiver que fazer com o repertório que você tem. O meu repertório, uma boa parte dele é mineiro, de Bom Despacho (risos)... Minha mãe é mineira de Bom Despacho. Então tem essa toda vivência. Eu sou completamente apaixonada por Belo Horizonte. Eu vivencio muito Belo Horizonte. Então tem isso muito forte comigo. Mas tem também uma outra parte que vem do meu pai, que é peruano. E tem uma uma vivencia também de música. De estar no mundo, que mistura as coisas. Então tem coisas que eu procuro a parte, que eu vou guardando com o tempo. Eu acho que você é um acúmulo. À medida que seu repertório vai ampliando também você tem mais possibilidades. Mas eu não sei dizer exatamente o que é e o que não é . Mas provavelmente deve estar um pouco claro. Às vezes a gente não percebe, mas os outros percebem.
No “MU” tem uma influência simbólica, da praça da liberdade. Mas eu sei essa dificuldade mesmo. Do realizador conseguir enxergar isso. Quem faz isso mais é os antropólogos, os estudiosos. Que vieram depois da gente.
Qual a sua militância para o desenvolvimento do cinema de animação no estado? Você acredita que os animadores mineiros estão se articulando em prol de melhorias para a profissão?
Eu atuei durante um bom tempo na ABCA, que é nacional. No estado, especialmente, eu tenho evitado, porque eu acho que isso vai além fronteiras. . As políticas são do Ministério da cultura, são da Ancine, que são gerais. Claro que no Estado tem também as leis de incentivo próprias, tipo a Filme em Minas, que é fundamental, e o filme está sendo feito através da Filme em Minas. Mas eu tenho atuado mais nacionalmente. Mas eu acho importante. . Eu acho que é bom as pessoas estarem conversando sobre isso, se posicionando.
Seu primeiro curta: Balançando na gangorra, recebeu um premio no 5th International Animation Festival - HIROSHIMA, em agosto de 1994. De que maneira participar de festivais internacionais ressonaram na sua carreira?
Bom, uma coisa puxa a outra. Esse filme mesmo, uma das pessoas que fez parte do júri, que era a (Cristina Panuska?????), que eu acho que ela é russa, mas mora nos Estados Unidos. Acabou me convidando para fazer um institucional para a Absolut Vodka. Isso trouxe uma possibilidade de trabalho, trouxe uma possibilidade de visibilidade. E eu conheci outras pessoas. Por causa desse prêmio também o pessoal de São Paulo que tinha visto o filme no festival me chamou para trabalhar com eles. Então, assim, você conhece outras pessoas. Você vê muita coisa e isso também te inspira. Você conhece, muitas vezes, as pessoas que você admira. Então. Eu acho que o fato de ver muito filme também te estimula muito. É uma troca. Você está num meio que você vai sendo moldado também por ele.
Qual a importância do MUMIA?
Olha, o MUMIA primeiro que ele traz animações fora do padrão. Porque esse é um grande problema, eu acho, pra maior parte das pessoas, quando eu falo que estou fazendo um filme de animação, todo mundo acha que é para criança (risos). Porque nos cinemas o que a gente mais vê é isso. E as pessoas tem quase que só acesso a cinema. Esse é o único festival que é voltado para a animação especificamente e que traz filmes que normalmente você não veria em outro lugar. Isso por si só já é uma contribuição enorme. Então eu acho que o MUMIA nesse sentido ele é fundamental... Ele vai acabar produzindo daqui a pouco várias pessoas que vão querer fazer para exibir no MUMIA. Isso gera um movimento. As pessoas se encontram também. O grande público que tem interesse em animação vai poder ver outros filmes que não estariam à disposição.
Você acha que ainda hoje o cinema de animação está ligado a ideia de ser feito exclusivamente para o público infantil?
Olha, essa é uma grande batalha. Isso é uma tecla que eu bato muito na ABCA. Porque eu acho absurdo vários editais no Brasil ainda privilegiam a animação para público infantil. O BNDES, por exemplo, eu não sei como que está esse ano, mas há um tempo atrás era pra público infantil. Eles tinham feito uma carteira para isso só. O edital que foi de animação da TV cultura ele ia ser pra público infantil. Esse foi uma das brigas. Eu escrevi pra eles. Eu coloquei pra eles que isso era reserva de mercado, que era um absurdo. Os adultos gostam de ver animação. Adolescentes gostam de ver animação. Mas tem pouca oportunidade de ver. E os animadores gostam de fazer animação para adulto. É igual literatura. Porque que tem que ser só para público infantil?! Tem muita possibilidade. Entãom aos poucos eu acho que as pessoas também vão percebendo isso. O filme “Valsa com Bashir”, “Persepolis”, eu acho que eles ajudaram um pouco esse grande público perceber que tem outros filmes, outras possibilidades pra a animação.
Muitos consideram que a animação possui uma vocação underground por excelência. Ou seja, que há um certo preconceito para com o cinema de animação em relação aos demais gêneros cinematográfico. Você concorda com isso?
Não. Eu acho que a animação é tão ampla. Ela passa por várias possibilidades. Igual eu te falei, olhando mesmo pelo National Film Board, que foi minha base inicial, tudo era possível. Era possível você animar qualquer coisa, com qualquer proposta. Eu não acho que ele tem essa tendência ou essa facilidade para o underground. Eu acho que tem você pode fazer qualquer coisa em animação. Agora, quanto a essa questão de gênero, eu acho que antes de tudo é filme. Se é animação, se é ficção, se é documentário. Eu acho que antes de qualquer coisa é um filme, é um audiovisual, é uma peça audiovisual. E é isso que importa. Eu não distingo dessa forma. E eu acho que isso seria super importante também não não houvesse essa distinção em festivais, que não houvessem categorias para animação, para público infantil. O filme por si só valesse. Eu mesma participei de muitos festivais de animação, mas sempre fiz questão de participar de festivais em geral. Pra não cair só num gueto de uma certa forma.
Você acredita que o cinema de animação pode vir a se tornar uma indústria no Brasil e, especificamente, em Minas?
Eu acho que sim porque tem crescido muito o número de animadores. Com esse crescimento do número de animadores tem crescido o número de projetos. Tem crescido então esse número de projetos. Tem vários filmes em produção hoje em longas metragem. Eu falo em longa metragem pensando num público maior. Porque curta já tem uma produção imensa. E você vê isso no mundo inteiro. E no Brasil é incrível isso mesmo.
Em sua opinião, o que falta para que o cinema de animação brasileiro atinja uma condição ideal? (Como, por exemplo, em relação a público, técnicas, narrativas, mão-de-obra, mercado, distribuição, divulgação, tecnologias e etc).
(Risos) Ai ai ai... Bom, aí vale para cinema em geral, que é verba adequada aos projetos. Que os projetos fossem vistos detalhadamente. E que as propostas fossem consideradas pelas suas especificidades. E mais que houvesse distribuição (risos). Porque também não basta só produzir. É preciso exibir.
Sávio Leite é de Belo Horizonte, onde nasceu em 1971. Graduou-se em Comunicação na Newton Paiva e realizou mestrado em Artes Visuais na UFMG. É professor de cinema de animação no Centro Universitário UNA há 13 anos. Além disso, ministra oficinas de vídeo e animação. É diretor de curtas-metragens Mirmidões, Marte, Plutão, O Vento, É Proibido Jogar Futebol no Adro da Igreja, Aeroporto, Eu Sou Como o Polvo, Mercúrio, Terra, Kombucha, Nego, Space Dust, Macacos Me Mordam, Tejo/tédio, Saturno, Marcatti, Arrudas, Desarquivando o Brasil, Vênus – Filó a Fadinha Lésbica, Lacrimosa, Walter Tournier e Dinheiro, exibidos e premiados em festivais nacionais e internacionais. Foi indicado quatro vezes ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, vencendo-o, em 2018, na categoria Melhor Curta-metragem. Criador e coordenador da Mumia – Mostra Udigrudi Mundial de Animação e do Timeline – Festival Internacional de Videoarte de Belo Horizonte. Foi jurado em festivais no Brasil e na Finlândia, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Armênia. Organizador dos livros Subversivos: o Desenvolvimento do Cinema de Animação em Minas Gerais, Maldita Animação Brasileira e Diversidade na Animação Brasileira. Em 2017, lançou, em DVD, a Coletânea Mumia de Animações Mineiras, em comemoração ao centenário da animação brasileira. Traduziu os livros Jorge Sanjinés e Grupo Ukamau – Teoria e Prática de um Cinema Junto ao Povo e A Forma Realizada: o Cinema de Animação. Prepara o lançamento do livro Uma Introdução ao Cinema Underground Americano, de Sheldon Renan.
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