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Rebecca, a Mulher Inesquecível (1940): Pesadelo Gótico

por Marcus Mello


Primeiro filme realizado por Alfred Hitchcock nos EUA, Rebecca, a Mulher Inesquecível (Rebecca, 1940) é um dos títulos mais bem logrados do diretor inglês. Lançado em março daquele ano, instantaneamente se transformou em um êxito de bilheteria e de crítica, conquistando no ano seguinte o Oscar de melhor filme, único prêmio na categoria que Hitchcock receberia ao longo de sua extensa carreira.

O filme conta a história de uma jovem tímida e de origem humilde (Joan Fontaine) que se casa com o rico nobre inglês Maxim de Winter (Laurence Olivier), viúvo atormentado pelas lembranças de sua falecida esposa, Rebecca. O casal vai viver em Manderley, a mansão dos De Winter, onde a nova Mrs. De Winter terá de enfrentar a resistência da governanta Mrs. Danvers (Judith Anderson), que idolatra a antiga patroa como se esta ainda estivesse viva.

Adaptação de um best-seller da escritora inglesa Daphne du Maurier, desde o início Rebecca foi tratado como uma superprodução. Afinal, era a estreia estrondosa nos domínios de Hollywood do jovem Midas do cinema inglês – que aos 40 anos de idade colecionava em seu currículo sucessos como O Homem que Sabia Demais (1934), Os 39 Degraus (1935), Jovem e Inocente (1937) e A Dama Oculta (1938) – pelas mãos do produtor David O. Selznick. Uma espécie de rei da Meca do Cinema, o todo poderoso Selznick acabara de realizar o filme mais caro da história, o épico ... E o Vento Levou (Gone with the wind, 1939). Há tempos Selznick vinha tentando trazer o diretor inglês para os EUA. Em 1938, o produtor já havia enviado um telegrama a Hitchcock, convidando-o a dirigir em Hollywood um filme sobre o naufrágio do Titanic. Mas Hitch, naquele momento envolvido com as filmagens de A Dama Oculta, permaneceria ainda um ano na Inglaterra, partindo para Los Angeles somente em 1939, provavelmente estimulado pela iminente eclosão da Segunda Guerra Mundial. Os constantes bombardeios alemães sobre Londres a partir de 1940 logo provariam o acerto dessa decisão, mostrando o quanto a costa oeste americana era um lugar bem mais aprazível e seguro para um cineasta de talento exercer seu ofício do que as ruas convulsionadas da capital inglesa.

O projeto sobre o Titanic logo seria abortado em função do burburinho em torno do romance Rebecca, publicado em 1938. Com seu faro para boas histórias, Selznick havia comprado a peso de ouro os direitos para o cinema do livro de Daphne du Maurier (1907-1989) – autora bastante popular na época, hoje praticamente esquecida – e ofereceu-o a Hitchcock. Esta seria a segunda adaptação realizada por Hitchcock de um romance de Du Maurier. Seu filme anterior, A Estalagem Maldita (Jamaica Inn, 1939), também fora baseado em um best-seller da escritora, a quem iria recorrer uma terceira vez, em 1963, transformando uma de suas narrativas curtas na obra-prima Os Pássaros (The birds).

Os bastidores da realização de Rebecca são um caso à parte e chegaram a merecer de Thomas Schatz um capítulo inteiro de O Gênio do Sistema (1988), seu já clássico estudo sobre a era de ouro dos estúdios em Hollywood. O ator Laurence Olivier fez de tudo para que sua mulher, Vivien Leigh (que fizera o papel de Scarlet O’Hara em ... E o Vento Levou), estrelasse o filme, mas Selznick e Hitchcock optaram pela jovem e inexperiente Joan Fontaine. Olivier não escondeu seu descontentamento com a decisão da dupla e passou a tratar sua colega com frieza desde o início das filmagens. Intimidada pelo tratamento do gigante Olivier – já uma lenda do teatro inglês e que estreara com sucesso em Hollywood interpretando Heathcliff em O Morro dos Ventos Uivantes (Wuthering heights, 1939), de William Wyler –, Joan Fontaine explicitava o desconforto no set, sentimento que seria habilmente explorado por Hitchcock na construção da personagem, que se sente uma estrangeira em Manderley.

Tanto esforço seria plenamente recompensado. Não apenas pela consagradora recepção do filme à época de seu lançamento, mas por seu crescente prestígio junto à crítica. No seminal Hitchcock (1957), Claude Chabrol e Eric Rohmer escrevem com entusiasmo sobre as qualidades do filme, que, na visão dos jovens críticos revelados nas páginas da revista Cahiers du Cinéma, marcaria “a primeira manifestação da maturidade de um talento”. Em seu pequeno livro – o primeiro dedicado ao diretor inglês, surgido dez anos antes do célebre Hitchcock/Truffaut (1967) com as entrevistas realizadas por François Truffaut com Hitchcock –, a dupla Chabrol/Rohmer já reconhecia a perfeita construção do filme, uma jóia de suspense psicológico que tem lugar assegurado entre os momentos altos da produção hitchcockiana. A mais notória ressalva viria de André Bazin (“Não posso dizer que os esforços conjuntos de Rohmer, Astruc, Rivette e Truffaut conseguiram me convencer do gênio escorreito de Alfred Hitchcock, especialmente em sua obra americana”), mas o desaparecimento prematuro do grande crítico francês, morto em 1958, com apenas 40 anos, impediu-o de analisar a filmografia de Hitch em perspectiva e especialmente de conhecer as obras-primas realizadas pelo diretor a partir de Um Corpo que Cai (1958), fundamentais para um julgamento mais aprofundado de sua obra.

Revisto hoje, 73 anos após seu lançamento, Rebecca demonstra não ter sofrido os efeitos do tempo. Pelo contrário, suas virtudes e frescor permanecem intactos e parecem mesmo ter sido potencializadas pela passagem dos anos. Hitchcock concebeu o filme como um pesadelo gótico, o que fica evidenciado já nas imagens noturnas de abertura, nas quais somos introduzidos, através do imponente portão de entrada, aos domínios da mansão De Winter em ruínas, e a protagonista, em voice over, dá início à história, inteiramente narrada em flashback: “Ontem à noite sonhei que voltava a Manderley...”. Embora em sua primeira meia hora de projeção Hitchcock engane o espectador, fazendo-o imaginar que está diante de um interlúdio romântico, a partir do momento em que a personagem de Joan Fontaine chega à sua nova casa e vê-se diante da sinistra governanta Mrs. Danvers, o que era para ser uma versão atualizada da história de Cinderela se transforma em um drama mórbido, de contornos sombrios.

Um dos aspectos mais interessantes de Rebecca está justamente nas sutis sugestões sobre a sexualidade da personagem de Judith Anderson. A relação obsessiva da governanta com sua antiga patroa esconde um claro componente homoerótico, fazendo do filme um dos títulos pioneiros a encarar o tema do lesbianismo em Hollywood. O tratamento dado por Hitchcock à figura de Mrs. Danvers revela uma postura extremamente ousada diante dos rígidos padrões comportamentais da Hollywood nos anos 1940 (regida pelo moralismo do Código Hays, que vigorou entre 1933 até meados da década de 1960), muito antes de o diretor voltar a abordar a homossexualidade de forma mais explícita em produções como Festim Diabólico (1948), Pacto Sinistro (1951) ou Psicose (1960). Anderson, há que se reconhecer, rouba o filme com sua assustadora composição de Mrs. Danvers, surgindo repentinamente das sombras para apavorar a pobre Fontaine. É da tensão entre as duas personagens que Hitchcock extrai a essência de seu atmosférico Rebecca, cujo clímax – o incêndio de Manderley – é capaz de mobilizar o mais insensível dos espectadores.

Outro ponto significativo é que Hitchcock não dá um nome próprio à protagonista, a quem todos se referem apenas como Mrs. De Winter. Nem mesmo seu marido, Maxim, a chama pelo nome, o que acentua o progressivo apagamento da identidade da heroína diante de sua antecessora, a onipresente Rebecca. Este, aliás, é o elemento de maior fascínio do filme: a habilidade de Hitchcock em transformar uma personagem ausente, já morta, em uma figura esmagadora, cuja “presença” domina a narrativa do início ao fim. Talvez nunca na história do cinema um diretor tenha conseguido dar tamanha materialidade física a um corpo inexistente, recorrendo apenas a elementos como música, iluminação e cenografia para fazê-la efetivamente existir, aniquilando progressivamente sua antagonista.

A revisão dessa primeira incursão cinematográfica americana de Hitchcock também escancara a banalização vivida pela produção hollywoodiana nas duas últimas décadas. Basta comparar Rebecca com alguns dos títulos que venceram o Oscar de melhor filme em anos recentes, como Gladiador (Gladiator, 2000), Uma Mente Brilhante (A beautiful mind, 2001), Crash – No Limite (Crash, 2005) ou Argo (2012), para perceber o quanto Hollywood vem descendo a ladeira com afinco.


A título de curiosidade final, a tradicional aparição de Hitchcock, que se tornaria uma marca de assinatura registrada em seus filmes, acontece aos 126 minutos de projeção, perto de uma cabine telefônica, e é quase imperceptível. Outra informação interessante, em particular para nós, espectadores brasileiros: o best-seller de Daphne du Maurier seria um plágio do romance A Sucessora, da escritora Carolina Nabuco (1890-1981). Filha do escritor e diplomata Joaquim Nabuco, Carolina publicou A Sucessora em 1934. A própria autora havia traduzido o texto para o inglês, enviando esta versão para um editor em Londres, o mesmo responsável pela publicação dos livros de Du Maurier. A escritora inglesa teria sido uma das leitoras do manuscrito de Nabuco e, em 1937, começaria a escrever Rebecca, lançado um ano depois.

 

Marcus Mello é crítico e pesquisador de cinema gaúcho. Editor da revista Teorema, fundada em agosto de 2002 e uma das publicações de cinema mais respeitadas do Brasil. Titular da coluna de cinema da revista Aplauso. Membro da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Tem ensaios publicados nos livros Cinema dos Anos 90 (2005), Cinema Mundial Contemporâneo (2008), Os Filmes que Sonhamos (2011), John Carpenter – O Medo é Só o Começo (2012) e Irmãos Coen – Duas Mentes Brilhantes (2012), entre outros. Atualmente é Coordenador de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre.


Texto publicado originalmente no catálogo-livro "Hitchcock é o Cinema", disponível aqui

 

Assista ao filme "Rebecca - A Mulher Inesquecível", de Alfred Hitchcook disponível em nosso catálogo virtual.



Confira o debate com os programadores Bruno Hilário e Vitor Miranda.



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