por Luiz Fernando Coutinho
O Batedor de Carteiras (1959) é o quinto longa-metragem de Robert Bresson, que realizou apenas 13 filmes em 40 anos de carreira. Trata-se de um de seus filmes mais célebres (senão o mais celebrado). Ele nos apresenta a trajetória (fragmentada, elíptica, lacunar) de Michel, um homem solitário que pratica furtos como meio de subsistência em Paris. Seus crimes, entretanto, parecem se justificar por motivos outros além do desemprego: uma espécie de crise espiritual, nascida das dores do isolamento e do vício, lhe consome as jornadas diárias. Há quem veja, nessa trajetória, ecos de Crime e Castigo, de Dostoievski – é o caso, notadamente, de T. Jefferson Kline (1998), em seu prodigioso estudo do filme.
Logo de início, O Batedor de Carteiras revela uma cartela onde pode ser lido que “o filme não é do estilo policial” e que essa aventura “reunirá duas almas que, sem ela, talvez nunca se conhecessem”. Aparentemente anódina, alusiva ao cinema silencioso, a cartela realiza duas operações importantes para Bresson. Em primeiro lugar, ela anuncia o desfecho do filme (“reunirá duas almas”) e assim desmonta, indiretamente, o mecanismo de suspense que organiza certo cinema comercial produzido na época. Lembremos que o filme anterior de Bresson já estancava o suspense em seu próprio título, Um Condenado à Morte Escapou. Em segundo lugar, a cartela expõe de imediato a distância pretendida (“o filme não é do estilo policial”) entre o projeto bressoniano e o cinema do qual ele busca se desvincular.
Isso porque Bresson construiu uma filmografia que, se por um lado era absolutamente propositiva em seus termos, por outro atuava como uma instância reativa ao cinema praticado então. Bresson foi um opositor intransigente do cinema de espetáculo e dos filmes que ele caracterizava como “teatro filmado”. Um cinema ancorado na arte cênica, no modelo do star-system e na profusão de imagens e efeitos só poderia constituir uma experiência terrível, da qual ele tentou se distanciar de forma intrépida e obstinada. Para isso, inventou o método (ou mesmo a teoria) de uma nova arte, a qual nomeou “cinematógrafo”.
Os primeiros filmes de Bresson, Anjos do Pecado (1943) e As Damas do Bois de Boulogne (1945), não haviam ainda sido realizados sob a égide (ou, pelo contrário, sob o risco) do “cinematógrafo”. É com Diário de um Pároco de Aldeia (1951), seu terceiro longa-metragem, que o cineasta começa a trilhar os caminhos de sua metodologia. Entre 1950 e 1958, ele escreve uma série de aforismos desconexos (Pascal é uma de suas maiores influências) para sistematizar esse método. Suas “Notas sobre o Cinematógrafo”, lançadas como livro, revelam um cineasta extremamente consciente de seus meios e objetivos, dos quais O Batedor de Carteiras é um dos resultados.
Se precisamos sempre desconfiar das palavras de um cineasta sobre a própria obra (ou pelo menos considerá-las com cautela), Bresson é uma ressalva exemplar de autor cujas palavras iluminam os filmes tanto quanto os filmes lançam luz sobre as palavras. Tendo isso em vista, e com a consciência de que as “notas” do cineasta não devem encerrar os filmes em paradigmas estanques, podemos percorrer alguns desses aforismos para prolongá-los e redimensioná-los na escala singular de O Batedor de Carteiras.
1. “É preciso que uma imagem se transforme no contato com outras imagens, como uma cor no contato com outras cores. Um azul não é o mesmo azul ao lado de um verde, de um amarelo, de um vermelho. Não há arte sem transformação” (BRESSON, 2008, p. 22).
Embora crítico ao cinema que internaliza os vícios do teatro, Bresson nunca deixou de recorrer à pintura (da qual era um praticante antes de se tornar cineasta) em busca de analogias com o cinematógrafo. Uma imagem, para Bresson, deve ser assignificante: ela deve ser despojada de sua iconicidade, despida de seus significados imediatos, esvaziada de qualquer metáfora ou expressividade autônoma. Ela não deve, enfim, possuir um “valor absoluto”. Bresson rejeita as belas imagens, conjuradas por uma fotografia que chama atenção para seus valores pictóricos, pois elas traem a função relacional do cinematógrafo, que diz respeito à composição e ao encadeamento expressivo dos planos.
No cinematógrafo, portanto, busca-se uma imagem depurada de seus atributos pictóricos; uma imagem “achatada”. Se o cineasta sempre preferiu a objetiva 50mm para a fotografia de seus filmes, é porque é “a mais alheia ao pitoresco, ao relevo" (SÉMOLUÉ, 2011, p. 302). É preciso que a imagem, neutralizada, não atenda mais a si mesma, mas ao contato com outras imagens. Aqui, podemos remeter à definição de linguagem proposta por Saussure, que a designava como um sistema de termos interdependentes em que o valor de cada um é determinado pelo seu contexto. Em outras palavras, todo signo resguardaria uma natureza arbitrária: seu valor resultaria da presença simultânea de outros termos. Assim é a imagem bressoniana, que retira seu sentido (sua transformação) do local onde é alocada em um determinado contexto.
Na primeira sequência de O Batedor de Carteiras, que se situa em um hipódromo, Bresson alterna dois planos. Em um deles, vemos em detalhe a mão de Michel buscar o conteúdo da bolsa de uma mulher. No outro, o cineasta nos revela o rosto inexpressivo do protagonista, que mantém o olhar direcionado para o horizonte. Para Jacques Aumont (2004, p. 16), a alternância dos planos produz uma “figura de disjunção”, pois o rosto é como que dissociado da mão. Assim, através da relação entre as duas imagens, Bresson expressa a inteligência das mãos de Michel, que se tornam o instrumento privilegiado de acesso e comunicação do personagem com o mundo. Como no cinema de Bresson, a mão destrona o olhar, o que significa dizer, como veremos, que a montagem – a liberdade manual de reagrupar pedaços da realidade, conferindo-lhes “valor tátil”, como dizia Deleuze (2018) – se impõe sobre o plano.
2. “Ela [a fragmentação] é indispensável se não queremos cair na REPRESENTAÇÃO.
Ver os seres e as coisas em suas partes separáveis. Isolar essas partes, torná-las independentes a fim de dar-lhes uma nova dependência” (BRESSON, 2008, p. 74).
Ao intercalar o plano da mão que furta a bolsa e o plano do rosto de Michel, Bresson lança mão da fragmentação do corpo humano. Em seus filmes posteriores a Diário de um Pároco de Aldeia, proliferam enquadramentos anatômicos que focalizam mãos, pés, cinturas, etc. Essa disposição ao plano-detalhe de uma parte do corpo, entretanto, participa de uma economia geral de fragmentação, que o cineasta opõe à representação teatral. Mais do que apreender um evento em sua totalidade ou em suas relações ordinárias, Bresson interessa-se, pelo contrário, em decompô-lo, desmontá-lo, desequilibrá-lo. É através da montagem – que se torna a operação fundamental do “cinematógrafo” – que esses fragmentos serão recompostos, remontados e reequilibrados em uma nova harmonia de relações.
A montagem, nesse sentido, adquire o poder de dar vida às imagens: ela configura, nas palavras de Bresson (2008, p. 72), a “passagem de imagens mortas a imagens vivas” – o que, nos termos utilizados anteriormente, quer dizer a passagem de planos assignificantes para planos significantes, sujeitos às relações que estabelecem com outros planos na cadeia semântica da escrita cinematográfica. Essa é a forma, aliás, como Bresson (2008, p. 19) define o cinematógrafo: “uma escrita com imagens em movimento e sons”. Alexandre Astruc, em 1948, já falava da “caméra-stylo”, ou da câmera-caneta, que se “se desfazia da tirania do visual, da imagem pela imagem, da narrativa imediata, do concreto, para se tornar um meio de expressão tão flexível e sutil como o da linguagem escrita” (ASTRUC, 2012). O cinematógrafo é, de certa forma, uma câmera-caneta.
O Batedor de Carteiras, como a maioria dos filmes de Bresson, apresenta uma narrativa em que as elipses (sintomas dessa vontade de fragmentação) cumprem papel fundamental. Podemos nos referir, por exemplo, ao momento em que Michel encontra-se em um café com Jacques e Jeanne. Os amigos levantam-se e o protagonista permanece sentado. Algo lhe chama atenção no fora de campo. Vemos, então, um plano-detalhe de um braço portando um relógio. Esse braço sai de quadro no momento em que seu dono levanta-se para ir embora. Michel, por sua vez, também se levanta e abandona o plano. Mais adiante, veremos o nosso batedor de carteiras voltando para casa com as mãos raladas e ensanguentadas. Ele explica, em voz over, que as feridas foram fatalidade de uma queda. Ele recebe uma visita de Jacques e, quando o amigo vai embora, retira do bolso o relógio da cena anterior. Não tivemos acesso ao furto: uma elipse o escondeu nas brechas da montagem. Para Bresson (2008, p. 34), “a poesia penetra sozinha pelas articulações (elipses)”.
3. “Nada de atores.
(Nada de direção de atores). Nada de papéis. (Nada de estudo de papéis). Nada de encenação. Mas a utilização de modelos, encontrados na vida. SER (modelos) em vez de PARECER (atores)” (BRESSON, 2008, p. 18).
Martin LaSalle, que interpreta Michel, nunca havia sido ator. No sistema de Bresson, esses atores não-profissionais são chamados de “modelos”, e o cineasta aplica a eles um tratamento semelhante ao da imagem: trata-se de despojá-los ao máximo, ressecá-los de toda intenção teatral, negando a mímica, os gestos excessivos ou as entonações empostadas. Neutraliza-se o ator assim como neutraliza-se a imagem: o modelo se torna um termo entre outros na equação (organização) cinematográfica, sendo modelado pelas instâncias discursivas com que tem contato (movimentos de câmera, montagem, som…). Com os modelos, Bresson buscou capturar justamente a inexpressividade do rosto e do corpo, pois acreditava que ela poderia conduzir a uma verdade íntima sobre eles.
Enquanto o ator de teatro se projeta para fora, saindo de si mesmo para representar outro, os modelos bressonianos devem seguir o caminho inverso: eles afundam-se em si, partem em uma jornada singular na direção de seu interior. Bresson tentou, com isso, tangenciar o que esses atores não-profissionais “mostravam involuntariamente, sem o saberem, em gestos, movimentos, expressões, através dos automatismos do comportamento” (FERREIRA, 2011, p. 154). Nesse sentido, os modelos não interpretam nem representam, e mesmo suas vozes são tornadas neutras ou “brancas”. Quando diante de um modelo, Bresson lhe pedia para dizer o diálogo como se dissesse para si próprio. Poética do monólogo, portanto, mas também dos gestos automáticos – “não premeditados” – e dos movimentos internos que o cinematógrafo quer descobrir. O modelo bressoniano esconde uma verdade que a câmera e a montagem buscam perscrutar; essa verdade, por sua vez, é impermutável e intransponível: cada modelo revela algo de único e inimitável. Por essa razão, Bresson nunca utilizou um mesmo modelo em filmes diferentes.
Martin LaSalle é um desses modelos de quem Bresson se acerca pacientemente na intenção de despi-lo, justamente, de toda intenção. Seu personagem, Michel, não carrega qualquer traço de psicologismo. Seus gestos e suas expressões são reduzidas ao mínimo, seus traços faciais pouco se movem. Na missa da morte de sua mãe, o protagonista é enquadrado levemente de costas e com isso nosso acesso ao seu rosto é obstruído. Quando ele se vira na direção de Jeanne, que está ao seu lado, vemos enfim o seu rosto inexpressivo molhado pelo choro. Em Bresson, nunca veremos um ator fazer nascer uma lágrima. Esvaziado, tornado pura presença física, Michel antecipa o personagem que, para Michael Haneke, é a expressão mais clara e coerente da teoria do modelo bressoniano: o burrinho Balthazar, protagonista do filme A Grande Testemunha (1966).
4. “Quando um som pode substituir uma imagem, suprimir a imagem ou neutralizá-la. O ouvido vai mais em direção ao interior, o olho em direção ao exterior” (BRESSON, 2008, p. 52).
O aforismo acima pode conduzir a duas características do cinema de Bresson. Em primeiro lugar, ele aponta para uma exigente economia de meios do cinematógrafo, ecoando assim outro aforismo (“Quando um violino é suficiente, não utilizar dois”). Em segundo, ele indica a importância decisiva que Bresson reserva ao som de seus filmes. Para o cineasta, a banda sonora nunca deve simplesmente acrescentar ou reforçar a imagem (como geralmente acontece no cinema comercial, inclusive em função do cronograma habitual de pós-produção, que prevê primeiro a montagem e depois a edição de som); ela deve, pelo contrário, ser uma entidade própria, autônoma, feita de modulações e de reverberações semânticas na imagem. Se a mise en scène de Bresson “coloca em cena” elementos diferentes em relações insuspeitadas (como a mão e o rosto no exemplo que vimos), seria preciso se referir também à mise en bande de seus filmes – tomo a expressão de Rick Altman, McGraw Jones e Sonia Tatroe (2000) –, que não cessa de “colocar na trilha sonora” diferentes categorias de som em relação umas com as outras.
Embora possa transmitir a impressão de uma captação direta, o som de O Batedor de Carteiras foi rigorosamente construído na pós-produção. Assim como Bresson vê “as coisas e os seres em suas partes separáveis”, isolando-as e depois reunindo-as dentro de novas relações, ele também decompõe os elementos sonoros, registrando-os separadamente, para depois organizá-los de forma expressiva. Dessa maneira, o diretor pode concebê-los como estruturas rítmicas. Bresson (2016, p. 60) já afirmou, por exemplo, que a composição da voz over, das imagens e dos diálogos é um trabalho semelhante a “pintar com três cores”. Dentro do sistema do cinematógrafo, todos os componentes fílmicos (ruídos, escala e duração dos planos, diálogos, música, movimentos de câmera, cor, vozes, entre outros) tornam-se matéria expressiva, extraindo seus sentidos dos contatos que estabelecem entre si.
Além disso, podemos ler, nas “Notas sobre o Cinematógrafo”, que “o cinema sonoro inventou o silêncio” (BRESSON, 2008, p. 42). Para Michel Chion (1994), isso significa que, com o advento do som no cinema, o silêncio tornou-se uma escolha estética. Mais importante, ele se tornou uma sensação resultante da organização de certos sons. Em O Batedor de Carteiras, passos, burburinhos, ruídos ou mesmo a voz over de Michel nunca traem uma impressão profunda de silêncio, conjurada igualmente pela natureza da narrativa (a solidão do protagonista), pelo trabalho sobre o modelo (a imobilidade) e por determinadas operações na imagem (a insistência em planos vazios). O conjunto de sons, em vez de anular o silêncio, configura a própria equação da qual resulta sua sensação impregnante.
5. “Montaigne – ‘os movimentos da alma nasciam com a mesma progressão que aqueles do corpo’” (BRESSON, 2008, p. 40).
Nos diferentes estudos sobre o cinema de Bresson, muito se referiu à dimensão espiritual (católica) dos filmes. Transcendência, jansenismo, metafísica, ascese, sacrifício, pecado, salvação, entre outros, são alguns dos termos geralmente convocados. A respeito de O Batedor de Carteiras, o cineasta francês Louis Malle disse, por exemplo, se tratar de uma parábola sobre um pecador (Michel), um Deus que o observa de perto (o comissário da polícia) e um anjo da guarda (Jeanne). Em parte da filmografia de Bresson, o conflito interior das personagens principais nasce da solidão e do desespero. O que elas buscam, em última instância, é a Graça, ou uma possibilidade de redenção. Michel, não diferentemente do padre de Diário de um Pároco de Aldeia, encontra-se em uma espécie de confinamento espiritual – mesmo seu quarto, pequeno e sujo, se assemelha a uma cela de prisão.
Foi Susan Sontag (1966) quem notou, em seu ensaio sobre o “estilo espiritual” de Bresson, o tema do confinamento e da liberdade. Para a autora, o encarceramento físico ou espiritual já era uma figura em Anjos do Pecado (o convento), em As Damas do Bois de Boulogne (os ciúmes), em Diário de um Pároco de Aldeia (a debilidade física, o isolamento) e em Um Condenado à Morte Escapou (a própria prisão). A perspectiva prisional retorna não apenas em O Batedor de Carteiras, como na quase integralidade do filme seguinte, O Processo de Joana D’Arc (1962). O tema da liberdade, por sua vez, é modulado de acordo com as determinações específicas de cada filme. Para Sontag, a liberdade do protagonista de Um Condenado à Morte Escapou coincide com a fuga literal da prisão. Em Diário de um Pároco de Aldeia e O Processo de Joana D’Arc (assim como em Mouchette), a morte é o gesto privilegiado de libertação. Já em O Batedor de Carteiras, a detenção de Michel, seu encarceramento físico, é a paradoxal conquista de sua liberdade: depois de preso, ele finalmente se abre para o amor (ou para a Graça), encontrando em Jeanne uma possibilidade de escapar do desespero.
Serge Daney (1998) escreveu, a respeito de Andrei Tarkovski, que nunca devemos esquecer que na palavra “metafísica” há “física”. Se Montaigne (uma das leituras de cabeceira de Bresson) previa uma relação particular entre a alma e o corpo, o cinematógrafo prolonga esse vínculo no campo das imagens e dos sons. A aventura interior de Michel nunca se desvincula das ações externas que ele realiza (e vice-versa). A Graça, ou a transcendência, passa necessariamente pela sua contraparte “profana” – o corpo, a carne, o toque –, o que conduz a uma dimensão ao mesmo tempo austera e erótica, religiosa e sensual. Na sequência filmada na Gare de Lyon, onde os batedores de carteira praticam uma longa série de furtos, sente-se mesmo a dimensão de uma orgia de mãos, dedos, corpos, olhares e toques. Claude Chabrol, que nunca foi um admirador de Bresson, disse certa vez que O Batedor de Carteiras é o único filme na história do cinema filmado à altura das braguilhas.
6. “Filmar é ir a um encontro. Nada no inesperado que não seja secretamente esperado por você” (BRESSON, 2008, p. 82).
Quando Jeanne vai ao encontro de Michel na prisão, na cena final de O Batedor de Carteiras, as personagens se tocam através das grades e a voz over do protagonista desfecha sua última frase: “Oh, Jeanne, para chegar até você, que caminho estranho tive que tomar”. As palavras iluminam com certa clareza o equilíbrio que o cinema de Bresson encontra entre predestinação e acaso. O cinematógrafo é uma escrita, uma arte, que visa atingir a “verdade” das coisas e dos seres, isto é, sua maneira visível de ser e estar no mundo. Enquanto sistema, ele busca apreender as aparências de forma premeditada, mas, enquanto postura, ele se abre ao inesperado das filmagens.
A verdade almejada pelo cinematógrafo não habita o cálculo do realizador, embora ele seja o responsável por fazê-la se manifestar, mas o imprevisto. Em outras palavras, o cinematógrafo é um dispositivo de captura: ele é um sistema que arma as condições para que a verdade imprevista dos corpos e do mundo se manifeste. Cabe ao cineasta, nesse caso, “provocar o inesperado” (BRESSON, 2008, p. 79) e aguardar o encontro com esse clarão de verdade. Segundo Jacques Aumont (2004, p. 18), o cineasta ocupa uma posição dupla e contraditória: “é todo atenção e todo retraimento: deve deixar algo advir – não importa o quê, qualquer coisa, mas singular – e, ao mesmo tempo, ele é o fomentador desse advento, que não aconteceria sem ele”. Difícil não ver na trajetória de Michel, e mais especificamente no seu encontro final com Jeanne, uma analogia do método de Bresson.
Entre a predestinação e o acaso, a dialética bressoniana ilumina uma prática que, nas palavras de James Quandt (1998), constitui uma arte do paradoxo: ao recusar o sentimentalismo do cinema comercial, Bresson alcança emoções tão mais potentes; ao lançar mão da simplicidade, ganha em densidade; ao fragmentar a realidade e os corpos, constrói novas unidades de sentido; ao trabalhar sobre as superfícies da imagem, conquista profundidade; ao enfatizar a fisicalidade, aponta para uma metafísica; ao conceber o mundo sob o olhar de um materialismo rigoroso, transforma objetos e gestos em signos transcendentes.
Junto com Jean-Luc Godard, Robert Bresson foi o cineasta francês mais influente da segunda metade do século XX. Sua obra deixou marcas indeléveis nas filmografias de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Pedro Costa, Béla Tarr, Aki Kaurismäki, Eugène Green, Bruno Dumont, Jia Zhang-ke, Michael Haneke, Jean-Pierre e Luc Dardenne, Darezhan Omirbayev, Martin Scorsese, entre outros. Chantal Akerman, por sua vez, disse em certa ocasião que O Batedor de Carteiras era “o filme de sua vida”. Entre as diferentes apropriações que se fizeram do filme, podemos recomendar pelo menos duas a quem chegou ao término desse texto: O Dono da Noite (1992), de Paul Schrader (que já dedicou um livro ao “estilo transcendental” do cineasta), onde os domínios do filme de Bresson são transpostos e ressignificados no contexto da violência urbana nova-iorquina, e O Pardal (2008), de Johnnie To, em que a coreografia bressoniana dos batedores de carteira, envolvendo mãos e corpos, atinge a escala de um espetáculo musical.
Referências
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ASTRUC, Alexandre. Nascimento de uma nova vanguarda: a caméra-stylo. Foco – Revista de Cinema, 2012. Tradução: Matheus Cartaxo. Disponível em: <https://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO4/stylo.htm>.
AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Campinas: Papirus, 2004.
BRESSON, Robert. Notas sobre o cinematógrafo. São Paulo: Iluminuras, 2008.
_____. Bresson on Bresson: interviews. New York: New York Review Books, 2016.
CHION, Michel. Audio-vision: sound on screen. New York: Columbia University Press, 1994.
DANEY, Serge. Ciné-journal, vol. 1. Paris: Cahiers du Cinéma, 1998.
DELEUZE, Gilles. A Imagem-Movimento. São Paulo: Editora 34, 2018.
FERREIRA, Carlos Melo. Cinema: uma arte impura. Porto: Edições Afrontamento, 2011.
KLINE, T. Jefferson. “Picking Dostoevsky’s Pocket: Bresson’s Sl(e)ight of Screen”. In: Robert Bresson. Toronto: Cinemathèque Ontario, 1998.
QUANDT, James. “Introduction”. In: Robert Bresson. Toronto: Cinemathèque Ontario, 1998.
SÉMOLUÉ, Jean. Bresson ou o ato puro das metamorfoses. São Paulo: Realizações, 2011.
SONTAG, Susan. “Spiritual Style in the Films of Robert Bresson”. In: Against Interpretation and Other Essays. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1966.
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