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Domingo de graça: celebração ou condenação?

por Mário Alves Coutinho



Sei falar curto de coisas longas.

Anton Tchekov



I


É admirável como um filme tão curto (com somente 9 minutos de duração) é capaz de conter tantos nomes, colaboradores, obras, citações e ideias sem, absolutamente, ser prolixo ou fazer uma enumeração cansativa e/ou confusa para o expectador.



II


Este pequeno curta-metragem é, portanto, o produto do trabalho de alguns cequianos históricos (como esta mostra de filmes que estamos vendo na Sala Humberto Mauro e virtualmente), que, na maioria dos casos, passaram da atuação cineclubística para a crítica cinematográfica e depois para a realização, produção, montagem ou qualquer outra atividade do fazer cinematográfico. Este é exatamente o caso de Ricardo Gomes Leite, diretor, roteirista e autor do argumento; de Paulo Augusto Gomes e Victor de Almeida, que trabalharam na pré-produção; de Geraldo Veloso, que fez a montagem; Licio Marcos de Oliveira, que esteve na direção da produção e Newton Silva, que criou os créditos. Somente o fotógrafo e câmera do filme não pertenceu aos quadros do CEC: Maurício Andrés Ribeiro.



III


Num filme minimalista, até mesmo para um curta-metragem, é admirável a lista de nomes dos músicos que comparecem na belíssima trilha sonora: Heitor Villa-Lobos, Ludwig van Beethoven, Arcangelo Corelli, Tomaso Albinoni e Sergey Prokofiev. E quanto as influências cinematográficas de Ricardo Gomes Leite? Dois nomes se destacam, sem esgotar outros: Jean Renoir e o mineiríssimo Humberto Mauro, dois poetas da natureza, em boa parte das suas obras. Ricardo Gomes Leite reconhecia esta filiação, embora dissesse, modestamente, que o seu curta era um “poemazinho despretensioso”.



IV


A primeira vez que vi “Domingo de graça”, não havia som, devido a um defeito do projetor que o exibia. Feliz acidente, pois me permitiu perceber – mais claramente – a sua estrutura imagética caraterística: ele estava claramente dividido em quatro movimentos (como uma sinfonia). Tratava-se, portanto, de uma peça musical, com uma diferença: esta sinfonia era feita com imagens, e não com sons (embora contivesse uma belíssima trilha sonora...). Seus quatro movimentos poderiam ter nomes tais como: a natureza, os animais, os homens e a cidade. Vê-lo posteriormente, já com som (somente música; Ricardo não colocou uma narração, como era comum em documentários) acentuou aquela primeira impressão.


O curta de Ricardo Gomes Leite começa com os detalhes de uma árvore do Parque Municipal de Belo Horizonte: saliências, reentrâncias, galhos, a árvore toda, todas as árvores, o particular (o detalhe) e o geral. Depois passa para os cisnes (um cisne, vários cisnes). Um homem, várias pessoas. O que estas pessoas fazem não tem nada (aparentemente) de extraordinário: dormem na grama, leem, andam, namoram, brincam (as crianças), conversam, escutam (e veem) um concerto da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais.

O extraordinário é que existe, em tudo que foi mostrado (as árvores, os animais, os homens, principalmente entre estes últimos), um clima de paz, harmonia e beleza. Representada em miniatura, a cadeia ecológica, aqui, parece estar num perfeito equilíbrio. Esta é uma sinfonia onde todos os instrumentos se encontram (e se completam) sem conflitos, para compor uma peça de incrível beleza e harmonia. Exatamente como a Orquestra Sinfônica que aparece no filme...



V


Mas eis que o último movimento do curta destrói esta aparência idílica: de repente, a câmera – colocada numa posição elevada, fora do parque - até então, o curta só mostrara seu interior, filmado de dentro, ao nível das pessoas, das coisas e da natureza - nos descreve os limites do parque, num movimento magistral, inesperado e até mesmo assustador, num zoom-out). O que vemos? O parque cercado por todos os lados, por prédios, ruas, concreto, asfalto, enfim, pela confusão e feiura da cidade moderna. O equilíbrio, a harmonia e a beleza se desfazem. O tom cinza da cidade liquida com a profusão e a riqueza das cores que tínhamos visto antes.


A harmonia, a beleza, e a poesia passam a estar, a partir deste momento, circunscritas no tempo e no espaço, definitivamente exiladas. O único lugar “de graça” é no domingo, somente num lugar, o Parque Municipal.


Estes momentos privilegiados anteriores, que acabamos de ver (onde somente a poesia tem lugar) são claramente delimitados pela realidade nos outros dias, em outros lugares? É com esta nota (esta interrogação) que Ricardo Gomes Leite termina “Domingo de graça”. Uma pequena obra-prima que, como dizia Tchekhov a propósito dos seus contos magistrais, “fala curto de coisas longas”. E, concordando e estendendo, também, o que o mesmo Tchekhov afirmara sobre sua obra, “a arte de escrever (no caso de “Domingo de graça”, a de filmar), é a arte de abreviar”. O curta-metragem de Ricardo Gomes Leite é, verdadeiramente, daqueles que filmes em que o menos é, realmente, mais. Muito mais.



VI


P.S.: Prestem atenção na originalidade dos créditos do filme: desenhados por duas crianças, Marcelo e Regina (filhos de Ricardo Gomes Leite) e criado por Newton Silva, eles dão a exata dimensão do que vem depois.


VII


Quarenta anos depois que o filme foi feito (1982), o que podemos falar da situação do Brasil e do mundo, em relação ao tema que ele trata, a ligação dos homens com a natureza? Desastres ecológicos, alagamentos torrenciais, muitíssimas mortes, chuvas fortíssimas e secas catastróficas, pandemias (quando a natureza nos ataca com o vírus, ela está, de certa forma, nos devolvendo nossa própria mensagem: o que vocês fizeram comigo, eu agora farei com vocês, Slavoj Zizek, em “Pandemia”),o que podemos fazer para parar com este horror? Será que conseguiremos reverte-lo? Será que conseguiremos destruir a destruição a que estamos sujeitos? Será que conseguiremos mudar de rumo do mundo que habitamos, economicamente, ideologicamente e eleitoralmente, e assim salvar o planeta e a nós mesmos? Ou será que estamos por demais dominados pela pulsão de morte, e não somente nossas lideranças, estas sim, definitivamente criminosas? Estas as perguntas que esta pequena obra-prima nos coloca, como pessoas de 2022, aqui no Brasil e no mundo. Toda grande obra (embora contraditoriamente pequena, como esta...) nos questiona e nos desafia individualmente, em termos de nação e de mundo (planeta Terra). As respostas e as responsabilidades, individuais ou coletivas, só podem ser nossas, espectadores...

 

Mário Alves Coutinho possui Graduação em psicologia (PUC-MG), Doutorado em Literatura Comparada (FALE-UFMG), Pós-Doutorado em Cinema (FAFICH-UFMG). Escreveu os roteiros de Idolatrada (longa-metragem), e João Rosa (sobre Guimarães Rosa) e O horizonte de JK, curtas-metragens. Livros: escreveu e organizou Escrever com a câmera, a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard; Godard, cinema, literatura; Jean-Luc Godard, de Acossado a imagem e palavra; Godard e a educação; Um corpo que cai, Alfred Hitchcock, ou o perverso e o sublime; traduziu O realismo impossível (ensaios de André Bazin); traduziu os poetas; ensaístas e romancistas William Blake e David Herbert Lawrence (Tudo que vive é sagrado; Canções da inocência e da experiência; O livro luminoso da vida). Escreveu o romance A explosão e o suspiro. Organizou, traduziu, editou, e introduziu Aforismos musicais, de Wolfgang Amadeus Mozart e Tudo tem que ser possível: o livro de Johann Sebastian Bach. Escreveu em vários jornais e revistas brasileiros, sobre cinema e literatura.

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