Eu quero fazer desse texto não só uma homenagem ao Sidney Lumet, mas também um ato de defesa a Diana Ross, ao Mágico Inesquecível e a seu discurso abertamente político e empoderador. Gostei demais de ver Diana Ross dividindo essa jornada musical com Michael Jackson que, inclusive, fazia sua estreia no cinema. Achei magnífica toda a produção e cada detalhe daquela cidade, desde as grafitagens das crianças presas como castigo, até a cidade esmeralda e toda aquela produção de dança que a cada número mudaram de roupa e de cor. Isso me encantou deveras. E, mesmo que as músicas ecoem diferente em sonoridade, elas batem forte na comunidade afro-americana, desde suas temáticas aos ritmos que abraçam o soul, funk e R&B. O Mágico Inesquecível é um discurso político, mas suas declarações políticas e culturais são promovidas através de uma fantasia dramática que até nem cabe fazer comparativo com o filme de 1939. Seria injusto com as jornadas dos personagens negros de The Wiz, pelo peso dramatico que carregam por gerações e gerações.
Mas vamos lá, a clássica e atemporal história de autodescoberta e construção de laços em O Mágico Inesquecível, faz o Kansas se tornar o Harlem, o cenário rural vira urbano, estilizado e vibrante de uma Nova York mágica e surreal ao mesmo tempo. A garota branca de outrora que ganha sapatinhos brilhantes de rubi, se torna a garota negra que veste, agora, sapatos prateados brilhantes que remetem muito a uma cultura glam e disco, muito em alta na década de 70 nos EUA e que a própria Diana Ross fazia parte. Aliás, foi uma década divisora para aquele país em todas as instâncias sociais, políticas e culturais. Acho que o filme de Sidney Lumet fecha uma era de grandes acontecimentos marcantes naquele país. Opa, falei em Sidney Lumet, o grande homenageado deste lindo e merecido dossiê.
Dorothy, vivida por Diana Ross que lutou a sua forma para conseguir ganhar esse papel e na época foi massacrada pela crítica por sua idade, considerada já avançada para viver a garotinha que se perde na fantasia. Idade é um fator complicado para Hollywood quando se trata de mulheres, e se forem mulheres negras, então, aí fica mais complexo ainda. Dorothy e os amigos que vai encontrando pelo caminho como o espantalho, que ganha corpo com Michael Jackson, o Homem de Lata que é interpretado por Nipsey Russell e o Leão Covarde quem faz é Ted Ross. Todos eles vivem cada um à sua maneira, a jornada épica e transformadora, cheia de autodescobertas que, aqui, com um elenco totalmente afrocentrado, ganha novos significados quando há essa mudança de perspectiva para a clássica história. Para o bem ou para o (nem tanto) mal, o filme soa diferente para essa população tão marginalizada e negligenciada historicamente pela mídia e indústria cultural. Apesar de tudo e dos desafios enfrentados pelos personagens, o enredo adaptado da peça de teatro para o cinema por Joel Schumacher, deixa sua mensagem de positividade ao incentivar o encontro com o amor próprio e a independência.
O Mágico Inesquecível pode carregar suas semelhanças com o clássico de 39, mas dadas as diferenças já mencionadas anteriormente, o que mais podemos classificar como diferencial, são o cenário e o figurino. Veja que até agora não mencionei o livro e vou ficar devendo essa menção, pois ainda não o li. E como já tinha enfatizado anteriormente, não é um texto comparativo e sim uma defesa a The Wiz que vem ganhando reconhecimento com o tempo. Dito isso, O Mágico Inesquecível de Lumet recria total e completamente os cenários que foram pensados para simular locais específicos dos EUA e agregar realidade e fantasia. Locais que tivessem relevância para a comunidade negra de lá e que pudessem se conectar com essa população. A partir daí, The Wiz reinventa completamente a aparência dos personagens e até a ordem de aparição das bruxas assim como seus nomes. Muitos dos trajes de The Wiz beiram a extravagância com cores quentes e até com influências steampunk. Mas, não só isso, o filme ainda pega carona no movimento de maior destaque da década de 70, o Blaxploitation. Mesmo que em 1978 ele já estivesse praticamente morto, The Wiz foi pensado para ser mais um a celebrar na representação forte e positiva de personagens negros, contribuindo para a narrativa de empoderamento e visibilidade negra no cinema.
Outra coisa que chama atenção em defesa desta produção e até pode passar batido para a maioria, é o uso, em algumas canções e títulos, do “black english”, uma variedade do inglês falada predominantemente por alguns afro-americanos e caracterizado por suas próprias regras gramaticais, pronúncia, vocabulário e entonação. Quem assina a produção musical e trilha sonora é nada mais nada menos que o icônico Quincy Jones, que trouxe canções originais com muita influência da Motown e que acabaram por dar à história clássica muito mais alma, emoção e energia.
Na altura da publicação deste texto para o dossiê, muito já se falou sobre a incrível diversidade de Sidney Lumet, que a princípio não foi o primeiro nome pensado para guiar esta produção. John Badham, primeiro nome da direção, se retirou da produção quando soube que Diana Ross teria sido escolhida para viver Dorothy. Segundo ele, Ross não era adequada para viver aquela criança de O Mágico de Oz. Outros nomes foram cogitados, mas foi Lumet quem assumiu e até foi recebido com certo ceticismo. Se The Wiz é essa fantasia dramática realista e mágica que vemos hoje, foi culpa de Lumet que impregnou sua bagagem e fez de O Mágico Inesquecível uma obra adulta e madura.
Eu poderia estar aqui fazendo o papel da problematizadora que desgosta do material pois foi todo reconstruido a partir do olhar branco ou o que ele conhece do “mundo negro” estadunidense, mas eu realmente gostei do filme e de todo cuidado pensado desde o micro até o macro. O espantalho de Michael Jackson que tem pensamentos derrotistas a partir das coisas que os urubus lhe falam, é muito a gente enquanto povo negro que introjeta, mesmo que inconscientemente, seculos e seculos de violencia e subjugação. A propósito, Michael se destaca como o espantalho não só pela sua música, mas também pela sua dança. É visível o quanto ele se diverte no papel e está à vontade. A dança é outra parte marcante em O Mágico Inesquecível, outro quesito que está muito relacionado também à cultura afro. É na parte da Cidade Esmeralda, o grande e memorável momento do filme com seus números de danças, figurinos e iluminação de tirar o fôlego. Se The Wiz ainda não tinha me ganhado até aí, foi a Cidade Esmeralda e a troca dos Winkies para uma classe trabalhadora explorada que me entreguei por completo ao filme. Não tem como negar que tudo foi realmente pensado para ser grandioso, marcante, representativo e inesquecível. Aquela cidade toda verde brilhante, roupas que evocam uma ancestralidade, mas que dialogam com um certo futuro e, que, do mais absoluto nada, vão se transformando em outras cores tão vibrantes e iluminadas quanto aquele verde. É de fato uma experiência visual exuberante marcada pela mistura de estilos, culturas e cores.
E, por fim, voltando um pouquinho, tenho que falar do mágico impostor vivido por Richard Pryor. É muito tocante que, mesmo depois de descobrir que ele não tem poder nenhum e nem é mágico de nada, ainda assim ele concede a mudança e virada de mesa que tanto os personagens como o Leão, o Espantalho, o Homem de Lata e a própria Dorothy buscavam.
A coragem, a inteligência e o valor próprio. É quando finalmente Glinda (Lena Horne), a Bruxa Boa do Sul, aparece e diz que Dorothy sempre teve o poder de voltar para casa através de seus sapatos prateados. E aí chega a canção final, Home, extremamente emocional e poderosa que acaba por resumir todas as descobertas que ela e seus amigos passaram durante os 133 minutos de filme. Home não só destaca o valor do lar, da família e da comunidade, mas destaca também que a verdadeira felicidade vem das conexões pessoais e de amizade. No fundo, no fundo, Dorothy quer mais se encontrar, se conectar consigo mesma do que propriamente reencontrar seu lar, isso é muito notável quando enfatiza seu solo final íntimo e dramático e não o reencontro com sua família.
Este ensaio foi escrito por Tati Regis como parte da mostra Lumet: Os Desafios Humanos.
Sobre A autorA
Recifense, licenciada em Artes Visuais, entusiasta do gênero horror, tema que pesquisa e estuda avidamente. Produz conteúdo sobre o tema, com atenção nas questões de gênero e raça. Escreve para seu próprio blog e também é colunista no site Horrorizadas, 365 Filmes de Horror e Filmicca. Pesquisa pautas para o podcast Mundo Freak, participou com artigos para o livro “O Melhor do Terror dos Anos 90”. Ministrou pelo MIS-SP junto com Queops Negronski e Carlos Primati o curso A História do Cinema de Horror Negro. Já colaborou como curadora e jurada para os festivais Cinefantasy, Boca do Inferno, Mostra MONSTRO de Jacareí e Cine PE 2024 como convidada da Abraccine.
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