por Ursula Rösele
Crise (Kris, 1946): um narrador começa a contar a história da chegada de uma mulher numa cidade do interior da Suécia. Ele situa o espectador acerca de alguns fatos e diz: “Que a peça comece. Eu não a definiria como uma história grande e angustiante. É, na verdade, apenas um drama do cotidiano. Quase uma comédia. Levantemos a cortina”. Uma personagem, então, abre a cortina de sua casa.
Chove sobre nosso amor (Det regnar på vår kärlek, 1946): um grupo de pessoas com guarda-chuvas espera o ônibus. Quando o veículo chega, todos entram, menos um homem, que fica de costas, enquanto vemos os créditos iniciais. Um contraplano revela seu rosto, agora não mais encoberto pelo guarda-chuva. Ele diz: “Devem estar se perguntando quem eu sou e o que faço nesta história. Não posso lhes contar agora. Eu me aventuro a dizer que isso é um segredo. Posso lhes dizer meu nome... Não, realmente isso não importa. É meu dever lhes familiarizar com o que está para acontecer”. Um fade nos leva a outro lugar, e o homem continua: “Chove. Espero que tenham notado que está chovendo. É uma chuva de quarta-feira. Uma chuva de outubro. E está muito frio. (Uma mulher entra em cena, atrás dele) Esperem! Aqui está um dos protagonistas”. Ele sai de quadro.
Uma lição de amor (En lektion i kärlek, 1954): o filme se inicia com a inscrição “uma comédia para adultos, de Ingmar Bergman”, e então ouvimos um narrador, em voz over: “Esta comédia poderia ter sido uma tragédia. Mas ela acabou bem. Nem o autor, nem os atores são os professores dessa lição, mas a própria vida com suas reviravoltas e mudanças absurdas. Podem assistir a essa lição de amor com um sorriso indulgente por ela ser elementar e por vocês terem há muito tempo passado dessa fase. Não passaram?”.
Para não falar de todas essas mulheres (För att inte tala om alla dessa kvinnor, 1964): o filme se inicia com a inscrição: “Qualquer semelhança entre este filme e o dito mundo real deve ser um mal-entendido”. Cornelius, um dos personagens, encara a câmera várias vezes ao longo do filme, compartilhando pelo olhar suas percepções em relação ao que acontece. Ao final, um grupo de pessoas se reúne e Cornelius aparece. Ele se posiciona em primeiro plano, e um jovem toca violoncelo para saudá-lo. Ele pede que o rapaz continue, olha para seu livro, fita a câmera, faz uma expressão de incômodo pela sua presença e diz: “Este é o fim do filme”. Uma última cartela lança a questão ao espectador: “Fim?”
Não me parece possível pensar a obra de Ingmar Bergman sem olhar para a sua totalidade, para o que ela abrange além de seu caráter “cinematográfico”. Muitos dos filmes dialogam – mais ou menos abertamente – com o teatro, e em tantas ocasiões o diretor também fez trabalhos para a televisão. Como não assisti a nenhuma de suas peças (e não ousaria adentrar profundamente nas teorias do teatro), não posso analisar o caminho inverso dessa reflexão, mas me aventuro a apontar em sua filmografia diversos momentos de uma espécie poderosa de híbrido entre o teatro e o cinema – e há muito, claro, de sua própria vida, angústias e inquietações.
O exercício de ver e rever sua obra é sempre instigante no sentido do que ela revela de potência, de experimentação, de exploração de limites. Ao dizer de um híbrido, a ideia não é uniformizar seus filmes inserindo-os todos nessa configuração, mas ampliar o ângulo de visão possibilitando percepção ainda mais extensa e profunda.
Bergman é constantemente inserido no hall dos cineastas modernos, por mais escorregadio e traiçoeiro seja o conceito. Sua carreira no cinema começa com Crise, em 1946, quase concomitante ao cinema neorrealista (considerado, pelos críticos da Cahiers du Cinéma à época, uma espécie de movimento moderno inaugural).
O prólogo de Crise, descrito acima, explicita a relação direta com o teatro (tanto em termos de sua proximidade com o coro[1] do teatro grego quanto com o teatro épico[2], algo que certamente reafirma a pluralidade das abordagens de Bergman para além da ideia de “moderno”) e, ao mesmo tempo, se pensarmos essa apropriação para o cinema, é interessante um “filme” ser conceituado pelo próprio narrador como “peça”, como se estivesse sendo esboçada ali uma junção harmônica entre as duas artes. Talvez fosse impossível separar o teatro e o cinema de suas criações, visto que o primeiro filme data de 1946, e sua carreira no teatro começara por volta de 1942. Bergman dirigia peças e filmes quase ao mesmo tempo com muita frequência.
É difícil falar de seu cinema de forma satisfatória, justamente porque as construções reflexivas geralmente pendem para um lado e sua obra aponta uma ramificação que torna esse exercício algo da ordem do impossível. Não é só cinema (e talvez o cinema jamais tenha sido “só cinema”), não é só teatro; e moderno, apesar de parecer o conceito mais próximo, também não o compreende por inteiro. Cabem recortes e recortes que sempre subentendem uma visão que não dá conta do todo.
Apesar de, na aparência, Bergman ser um desses grandes autores cuja obra já foi dissecada, a sensação de quem escreve sobre ela é sempre de incerteza, de tatear o escorregadio, algo que certamente aflige qualquer pessoa que se aventura a tocar num cânone, como se fosse impenetrável e intangível. O mais simples, talvez, foi esboçado por Godard ao dizer que “há, na história do cinema, cinco ou seis filmes cuja crítica gostamos de fazer exclusivamente por estas palavras: 'É o mais belo dos filmes!'. Porque não há elogio maior” (2012, p. 203). Seria redutor dizer isso de toda uma obra, mas não podemos deixar de admitir a tentação em fazê-lo.
Ao longo das seis décadas em que o diretor construiu sua filmografia, são inúmeros os exemplos de filmes que trabalham em alguma medida os limites intra/extrauniverso diegético. No Dicionário teórico e crítico de cinema, os teóricos Jacques Aumont e Michel Marie trazem o conceito de Étienne Souriau, que diz: “Os fatos diegéticos são aqueles relativos à história representada na tela, relativos à apresentação em projeção diante dos espectadores. É diegético tudo o que supostamente se passa conforme a ficção que o filme apresenta, tudo o que essa ficção implicaria se fosse supostamente verdadeira” (2003, p. 77).
Bergman de certa forma extrapola o conceito, ao exercitar a linguagem cinematográfica (acrescida da potente estilística do teatro) e conjugar uma série de questões extradiegéticas, fazendo sempre o movimento nada retilíneo e nada uniforme de ir e vir na narrativa, retirando o espectador de seu conforto habituado à estética clássico-narrativa, mas sempre conduzindo-o cuidadosamente de volta ao filme.
O caminho aqui, portanto – ainda que porventura não faça jus à amplitude desses movimentos ou possa eventualmente abrir mão de um ou mais filmes –, é o de investigar a recorrência, na obra de Bergman, de alguns elementos (teatrais e/ou cinematográficos), tais como a quebra da quarta parede (Monika e o desejo, Para não falar de todas essas mulheres, Sonata de outono e Saraband), a presença de um narrador onisciente que, presente fisicamente ou em voz over, tanto iluminará a obra para o espectador quanto colocará questões as mais diversas (Crise, Chove sobre nosso amor, Uma lição de amor e O olho do diabo) e, não menos importante, trazer o cinema, em sua materialidade, para o cerne do filme (A Paixão de Ana, Persona e, em alguma medida, A hora do lobo).
Ainda que tematicamente os filmes mantenham diálogo constante (crença, morte, solidão, culpa, angústia, loucura etc), sempre houve em Bergman a necessidade de ousar, de transpor limites. Ao inserir recursos do teatro como algo fundamental da mise-en-scène, o diretor tanto trouxe para o cinema inquietudes estéticas como as utilizou para potencializar a linguagem cinematográfica.
É interessante pensar seu cinema como sendo moderno (e há várias maneiras de comprovarmos essa afirmação), mas também podemos considerar a amplitude das abordagens e os diálogos com as diversas vertentes estético-narrativas do cinema e do teatro – evocar o coro do teatro grego, por exemplo, é um ato que pode ser considerado moderno quando apropriado no cinema, mas não podemos negar que foi herdado do teatro na Grécia Antiga. O conceito de Drama Moderno no teatro data de 1890, ou seja, cinquenta anos antes da modernidade ser efetivamente abordada no cinema. Henrik Ibsen é considerado o autor que deu início ao Drama Moderno, e um dos autores influenciados por sua obra é August Strindberg. Não por acaso, os dois são as principais referências de Bergman, e peças de ambos já foram adaptadas pelo cineasta[3].
O complexo e algo controverso conceito de cinema moderno merece aqui algumas considerações, que certamente não darão conta de sua amplitude. Sabe-se que “cinema moderno” é antes uma ideia que algo dado (assim como a própria ideia de cinema clássico também não é única e pétrea). É uma tentativa, uma especulação, uma categorização que emerge e se sustenta principalmente a partir de algumas oposições.
A própria variedade do que seriam os paradigmas iniciais, os marcos do cinema moderno, demonstra a fluidez, bem como certa imprecisão do conceito. De Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) à A aventura (L'avventura, 1954), passando por Roma Cidade Aberta (Roma, città aperta, 1945) e chegando a Acossado (À bout de souffle, 1959) e O ano passado em Marienbad (L'année dernière à Marienbad, 1961), são vários os filmes que seriam os precursores, dependendo dos critérios adotados e das ênfases em um ou outro aspecto. No entanto, mesmo considerando toda a instabilidade, é inegável que tais vertentes estéticas e caminhos engendrados em cada uma das matrizes foram suficientemente potentes e complexos para tornar necessário esse esforço teórico que acabou ganhando repouso na ideia de cinema moderno.
Desde os primórdios do cinema existe a tensão entre o clássico e o moderno, como se o primeiro fosse uma espécie de versão conformada do capitalismo, e o segundo bradasse aos céus uma defesa da modernidade como libertação. De todo modo, é possível justificarmos o uso do termo “clássico” como matriz ideológica e estética advinda do romance realista do século XIX.
É fato que grande parcela da produção cinematográfica mundial desde o início do cinema (Edwin Porter, Max Linder etc) e parte considerável dos filmes realizados no início do século XX tinham como base o paradigma clássico (ficcional, narrativo, transparente). Isso foi consolidado a partir da ideia de decupagem clássica, sistematizada principalmente por Griffith.
O que caracteriza a decupagem clássica é seu caráter de sistema cuidadosamente elaborado, de repertório lentamente sedimentado na evolução histórica, de modo a resultar num aparato de procedimentos precisamente adotados para extrair o máximo rendimento dos efeitos da montagem e ao mesmo tempo torná-la invisível (XAVIER, 2005, p. 32).
Uma das diferenciações principais entre cinema clássico e moderno advém da ideia de transparência versus opacidade, invisibilidade versus visibilidade:
Quando o “dispositivo” é ocultado, em favor de um ganho maior de ilusionismo, a operação se diz de transparência. Quando o “dispositivo” é revelado ao espectador, possibilitando um ganho de distanciamento e crítica, a operação se diz de opacidade. (MACHADO, 2005, p. 6)
A ideia de invisibilidade está ligada diretamente à construção do filme, ou seja, a uma montagem que não pretende expor seus mecanismos e “se denunciar” efetivamente como cinema.
Se há um corte em meio a um gesto de uma personagem, toma-se todo o cuidado para que o momento do gesto correspondente ao fim do primeiro plano seja o instante inicial do segundo, resultando na tela uma apresentação contínua da ação. Todos os objetos e as posições dos vários elementos presentes estão rigorosamente observados para que uma compatibilidade precisa seja mantida na sequência. As entradas e saídas (de quadro) das personagens serão reguladas de modo a que haja lógica nos seus movimentos e o espectador possa mentalmente construir uma imagem do espaço da representação em suas coordenadas básicas mesmo que nenhum plano ofereça a totalidade do espaço numa única imagem. As direções de olhares das personagens serão fator importante para a construção de referenciais para o espectador, e vão desenvolver-se segundo uma aplicação sistemática de regras de coerência. Dentro desta orientação, a decupagem será feita de modo a que os diversos pontos de vista respeitem determinadas regras de equilíbrio e compatibilidade, em termos da denotação de um espaço semelhante ao real, produzindo a impressão de que a ação desenvolveu-se por si mesma e o trabalho da câmera foi “captá-la” (XAVIER, 2005, p. 33).
Caberia ao cinema moderno, portanto, renunciar a essas regras e apontar novos caminhos. A opacidade é o oposto da transparência, ou seja, se por um lado a narrativa clássica corrobora para trazer o espectador para dentro da trama e ocultar seus mecanismos de construção, a narrativa moderna é opaca, nublada, nega ao espectador a psicologia do personagem, desconstrói uma ideia de certa maneira maniqueísta que define o herói e o anti-herói – no cinema moderno, o bem e o mal podem habitar a mesma pessoa, visto que o mundo moderno se apresenta como um mundo instável.
A visibilidade seria então o procedimento que desconstruiria a ilusão explicitando o método. Para o cinema moderno, não há necessidade da montagem se fazer invisível, visto que a ideia é possibilitar um “ganho de distanciamento e crítica” que tire o espectador de uma imersão inativa no universo diegético, para que seu retorno à narrativa após uma suposta quebra se carregue de novas potências (exercício certamente próximo do teatro épico de Brecht, diga-se de passagem).
Em Persona (1966), por exemplo, não interessa a Ingmar Bergman se repetir a mesma cena por pontos de vista diferentes pode dar-lhe caráter de inverossimilhança. Pelo contrário: a cena na qual uma das personagens faz uma revelação à outra é potencializada por esse ato “moderno” do diretor. Interessa a ele possibilitar ao espectador a experiência de ver/ouvir a narração por parte de uma das mulheres e também nos mostrar todas as nuances de reação da outra, a atriz emudecida (algo que, se fosse realizado a partir do tradicional plano e contraplano, contribuiria para perda significante do impacto de ambas as atuações).
Um dos primeiros filmes de Bergman em que o diretor se apropria de um recurso do teatro de forma a potencializar a linguagem cinematográfica é Monika e o desejo (Sommaren med Monika, 1953). Harry Lund é o rapaz de 19 anos que se envolve com Monika Eriksson, jovem inconsequente de 17. Os dois abandonam os empregos, e Harry pega o barco do pai para passar um verão idílico com Monika numa ilha isolada. A garota engravida, e os dois têm de retornar ao mundo “real”, o que desencadeia uma série de questões complexas.
O filme segue seu rumo, apontando o universo diegético como o único espaço possível para os personagens até que, nos minutos finais, Monika abre mão da nova configuração de vida e parte ao desconhecido, aos novos flertes, ao imprevisível. Ali, Bergman faz uma escolha que marcou sua obra para sempre: sentada num bar, Monika aponta o cigarro apagado a um homem qualquer, que o acende, os olhos pregados nos dela. Com a chama acesa, ela vira o olhar para o único lugar ainda não experimentado (ela, que tanto fitara o infinito do horizonte de cima do barco, das pedras, da areia): o extracampo, o fora, nós. Esse olhar, o mais triste de todos, como diria Godard, atravessa a câmera. Nesse momento, é como se Bergman afirmasse: o universo diegético se tornou insuficiente para a expressão desse não-lugar, dessa incerteza buscada pela personagem. De repente nós nos tornamos cúmplices, não mais espectadores, mas os únicos capazes de partilhar aquilo que o mundo do filme deixara de abarcar.
Essa espécie de ato inaugural em seu cinema, o de quebrar a quarta parede[4] e dissolver a ideia de diegese para trazer o mundo para o filme e levar o filme para o mundo, é talvez uma das maiores contribuições de Bergman para a arte. O olhar de Monika implode limites, expõe a película à luz exterior e nos convoca a nos misturarmos com a matéria fílmica como se uma separação não mais fosse possível. Movimento que seria retomado quatro anos mais tarde por Fellini num ato diferenciado, de crença no mundo: na percepção da necessidade de conformação com a vida, Cabiria[5] nos olha e sorri – a felicidade para ela parece tão distante quanto o horizonte que Monika tanto buscou, mas não havia muito mais o que fazer a respeito.
Em 1966, com Persona, Bergman explodiria de vez toda a lógica do universo diegético e faria o seu exercício estético mais provocador, instável e ao mesmo tempo absolutamente consciente da potência do cinema. O filme começa fora de si, numa espécie de surto da forma, em busca de se encontrar: o cinema, a película e as pulsões de vida e de morte vêm antes mesmo do filme efetivamente começar (se é que podemos pensá-lo dessa forma limitadora: Persona jamais começa e, nesse rumar infinito, jamais termina), como se não houvesse paredes, limites; o espaço já é transposto em si, rompido, fragmentado.
Além de expor, no prólogo e no momento final (pontuados por carvões de projetor que se acendem e apagam), os artifícios mecânicos que dão às imagens descontínuas da película a sensação de vida corrente, ele deixa em aberto as conclusões sobre a ficção de cada cena. A continuidade das imagens é primordialmente interior, pautada pela paisagem anímica que emerge nos rostos assombrosamente expressivos de Liv Ullmann e Bibi Andersson. Sem este acesso às tensões psíquicas de Alma, a enfermeira (Andersson), e Elisabeth Vogler, a atriz (Ullmann), a sucessão das cenas seria insuportavelmente arbitrária (AZEREDO, 2012, p. 103).
Bergman diria sobre o filme que, com ele, havia tocado em algo da ordem do indizível. O cinema, em sua materialidade (película, carvões do projetor) se torna o único instrumento linguístico capaz de expressar o inexpressável. E se impossível através das palavras, o cinema conforme constituído até então também teria de ser ameaçado pelo que vem de fora dele, matéria inflamável, perecível – tal como os limites de nossa sanidade.
Película, projetor, projeção, pênis ereto, animação, morte de uma ovelha, de Cristo, mãos movimentando. Planos de um senhor idoso, uma senhora e um menino cobertos por um pano (alusão a um necrotério). Um telefone toca e, em corte eisensteiniano, vemos a senhora que abre os olhos mecanicamente e nos encara, enquanto o menino acorda. Ele lê um livro, e algo tira a atenção: as lentes, a câmera, o fora, os rostos de Alma e Elisabeth. Persona é o filme dentro e fora do filme.
Conforme abordado por Ely Azeredo, não fosse a tensão entre Alma e Elisabeth, a sucessão desses elementos no filme em curto-circuito pareceria realmente arbitrária. Se anteriormente Bergman já havia provocado esse fora do filme através de recursos vários, em Persona ele provoca uma crise contínua – das personagens, de nós, da matéria-filme. E de alguma maneira ele não abandona o espectador nesses devaneios. Ele não se furta em narrar o drama essencial dessas duas mulheres também de forma linear: a atriz emudecida pela vida e a enfermeira que se deixa enlouquecer pela impossibilidade do silêncio.
Ao longo de todo o filme, Bergman mergulha na narrativa e também nos arranca do fundo. Logo no início, após conhecer Elisabeth no hospital, Alma se dirige à câmera enquanto se prepara para dormir:
É engraçado. Pode fazer o que quiser, fazer quase tudo. Me casarei com Karl-Henrik e terei filhos os quais terei que criar. Tudo isso está predestinado. Está dentro de mim. Não há o que pensar. É um sentimento seguro. Tenho um trabalho que gosto. Isso é bom, também, mas de outra forma. Mas é bom. Bom. (Ela deita e apaga a luz) O que será que há de errado com ela? Elisabeth Vogler. (Um corte e estamos no quarto de hospital. Elisabeth caminha de um lado para o outro e a TV está ligada) Elisabeth.
Nessa quebra da quarta parede, novamente nos tornamos ouvintes, cúmplices. Alma divaga, nada conclui, mas busca a câmera para fazê-lo. Aos 45 minutos, o filme entra de vez em curto-circuito, quando Alma lê uma carta escrita por Elisabeth para sua médica dizendo que a enfermeira estava apaixonada por ela de forma ingênua. A ira de Alma é a ira da película. A película queima, e vemos novamente vários flashes de outras cenas (do cinema, de Cristo crucificado, do mundo), como no princípio do filme. Bergman faz um zoom em um olho ansioso, revelando o seu âmago, suas veias, tornando-o quase um único pixel. O filme retorna sem foco, como se a crise do universo diegético ferisse o olho do cinema, o olho da câmera.
Para finalizar (o melhor a dizer é forçar um fim) esse breve passeio pelo cinema infinito de Bergman, A Paixão de Ana (En passion, 1969). O filme começa com um narrador em voice over, que nos apresenta um dos personagens: “Seu nome é Andreas Winkelman, ele tem 48 anos. Ele vive sozinho nesta casa há algum tempo, numa ilha em alto-mar. O telhado está em mau estado faz um bom tempo e, após as chuvas de outono, surgiram muitas goteiras”.
O que parecia ser um filme não tão distante da estética clássico-narrativa deixa de ser aos dez minutos, quando uma claquete invade a tela: “Von Sydow. Tomada 4”. Uma voz, possivelmente a de Bergman, se dirige a ele (Max Von Sydow, ator que interpreta Andreas Winkelman, sentado diante da câmera): “Max, como ator, qual é a sua opinião sobre Andreas Winkelman?”. Von Sydow diz que o personagem é difícil, pois está tentando se esconder do mundo exterior. Ele então analisa que as questões que o afligem são complexas, visto ser um personagem “tentando apagar seus meios de expressão (...). O mais difícil como ator é expressar essa falta de expressão”.
Há quatro personagens centrais em A Paixão de Ana: Andreas, Anna Fromm (Liv Ullmann), Eva Vergerus (Bibi Andersson) e Elis Vergerus (Erland Josephson). Há, portanto, quatro interrupções no fluxo do filme. Ao 33 minutos, a atriz aparece com um chapéu primaveril, o total oposto de sua personagem: “Liv Ullman, tomada 7”. Não ouvimos a pergunta, ela responde direto:
Compreendo a necessidade de Ana pela verdade. Entendo o que ela quer que o mundo seja de um certo modo. Mas sua necessidade, este desejo pela verdade, é perigoso. Quando percebe que o mundo ao seu redor não faz sentido, quando ela não obtém a resposta que deseja, ela se refugia em mentiras e dissimulação. Por isso que é tão difícil ser honesta, você espera que os outros também sejam. Vemos isso hoje em milhares de pessoas.
Após uma hora de filme, a claquete é batida e, sem apresentações, Bibi Andersson diz:
Acho que Eva é uma mulher que não consegue aceitar o fato de não ter uma intimidade. Ela é apenas uma criação dos outros. Ela não tem paz de espírito ou autoestima. Acho que ela tentará cometer suicídio. O suicídio não é uma solução. É apenas mais uma ação egoísta. Espero que ela seja salva. Espero que, quando ela despertar, ela tenha passado por algo que a liberte de si própria e que ela consiga olhar para seu antigo eu com amor, mas sem remorso. Acho que ela decidirá se tornar professora de pessoas surdas, porque surdos vivem num isolamento mais profundo do que ela já viveu. Acho que ela se sentirá aliviada e abençoada.
Ao final do filme, vemos novamente a claquete e, dessa vez, o ator Erland Josephson:
Acredito que Elis ache que é hipocrisia ficar horrorizado com a insensatez humana e que clamar por decência e justiça é um desperdício de sentimentos. Ele não permitirá que o sofrimento dos outros o acorde de noite. Ele acha que é indiferente aos seus olhos e aos dos outros. Ele vive com essas condições, senão ele não poderia funcionar.
Bergman traz para dentro do filme uma reflexão dos atores acerca daqueles que interpretam e ressignifica a relação do espectador com os personagens. A ampliação de significados ocorre porque não temos apenas figuras encarnadas, mas vários duplos: Andreas-Max, Anna-Liv, Eva-Bibi e Elias-Erland. O personagem e uma percepção externa a ele pela mesma pessoa. A fusão Alma-Elisabeth de Persona é aqui retomada em outro viés. Se lá havia duas mulheres fundindo-se em uma só, há aqui a ficção e sua construção ocupando o mesmo espaço.
Há leituras sendo feitas e não conclusões. A personagem Eva, por exemplo, não mais aparece após a análise de Andersson, ou seja, se ela efetivamente se suicida não é algo que viremos a saber. Bergman força o fora de maneira densa e ao mesmo tempo simples, por isso fantástica. E não podemos dizer que, com esses movimentos, o espectador perde a conexão com a obra. É também oferecida a chance de mergulhar no universo do filme.
É filme, é peça, é drama, é comédia, todas essas afirmações estão presentes nesse cinema. Nossas expectativas serão frustradas, mas por vezes nos será ofertado um novo final. A sensação de curto-circuito virá tantas e tantas vezes e, ao ver e rever seus filmes, eventualmente poderemos nos dar conta de que as distâncias são todas relativas. Os recursos são inúmeros, alguns presentes aqui, outros ficam para divagações posteriores. Mas uma coisa parece certa no cinema gigante de Ingmar Bergman: as limitações são de ordem existencial, terrena, objetiva. Da morte saberemos quando ela vier. Dessa obra magistral, fica uma sensação com vestimenta de certeza: a diegese, no final das contas, somos nós.
[1] Coro: “Grupo de cantores ou recitantes que atua em espetáculos de TEATRO ou de ÓPERA. A principal característica do coro é falar ou cantar de forma conjugada, geralmente em uníssono. Na tradição do teatro ocidental, o coro aparece pela primeira vez no TEATRO GREGO, originário das festas comunais, báquicas ou dionísicas. (...) Através do coro parece manifestar-se, de algum modo, o ‘autor’, interrompendo o diálogo dos personagens e a ação dramática, já que em geral não lhe cabem funções ativas, mas apenas contemplativas, de comentário e reflexão” (2009, p.77).
[2] Teatro épico: “Tipo de DRAMA que procura acentuar os traços épicos da narrativa a fim de produzir o efeito do DISTANCIAMENTO. O termo foi usado inicialmente por Erwin Piscator (1893-1966), mas foi Bertolt Brecht (1898-1956) quem desenvolveu uma teoria consistente acerca da matéria. Trata-se de um estilo anti-ilusionista, cuja essência consiste na apresentação, não das relações interpessoais, mas das que decorrem de determinantes sociais. (...) As técnicas do teatro épico incluem a utilização de canções, narração, projeções, além de uma exposição através de um ENREDO EPISÓDICO, o que evita o processo de identificação entre espectador e personagem, ao mesmo tempo que fortalece a participação intelectual do espectador” (2009, p. 235).
[3] De acordo com o Dicionário de Teatro (VASCONCELLOS, 2009, p.97-98), “convencionou-se determinar o início do drama moderno em torno de 1890, quando Pilares da sociedade, de Henrik Ibsen (1828-1906), começou a ser representada com incrível sucesso por toda a Europa. Com essa peça, iniciou-se o REALISMO na obra de Ibsen, caracterizado, do ponto de vista formal, pela adesão aos princípios da PIÈCE BIEN FAÎTE em oposição à artificialidade do MELODRAMA do século XIX e, do ponto de vista temático, pelo estudo do homem na sociedade, numa sucessão de enfoques que variavam desde a busca do eu profundo num contexto social conflituado até a missão social que é destinada ao indivíduo. A influência de Ibsen foi enorme na obra de grandes autores contemporâneos ou que o sucederam em curto espaço de tempo, como August Strindberg (1849-1912), Gerhart Hauptmann (1862-1946) e Bernard Shaw (1856-1950), entre outros”.
[4] “Termo cunhado por André Antoine (1858-1943) para designar a parede imaginária situada na altura do ARCO DO PROSCÊNIO que separa o PALCO da PLATEIA. A quarta parede constitui uma convenção do NATURALISMO no teatro, e sua prática exigiu o desenvolvimento de uma técnica de interpretação em que o ATOR simula, através de seu comportamento, a continuidade do CENÁRIO através dos quatro lados do palco. Em consequência, o ator representa ignorando a presença do espectador diante dele” (2009, p. 196).
[5] Referência ao filme Noites de Cabíria (Le notti di Cabiria, Federico Fellini, 1957).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUMONT, Jacques & MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas: Papirus, 2003.
CASTAÑEDA, Alessandra; LUCCAS, Giscard; ZACHARIAS, João Cândido (org.). Ingmar Bergman. 1ª ed. Rio de Janeiro: Jurubeba Produções, 2012.
MACHADO, Carlos Wagner Costa. O cinema moderno de Rogério Sganzerla. 2010, 49 f. Monografia (Pós-Graduação em Produção e Crítica Cultural) – Pontifícia Universidade Católica, Belo Horizonte, 2010.
VASCONCELLOS, Luiz Paulo. Dicionário de teatro. RS: L&M, 2009.
XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1991.]
*este texto foi produzido em virtude da mostra Ingmar Bergman - Instante e Eternidade, realizada pela Fundação Clóvis Salgado no Cine Humberto Mauro em 2014.