Meu filme “Idolatrada” foi realizado entre 1981 e 1983. Foi a segunda produção do chamado Polo Mineiro de Cinema, resultado de um convênio entre a EMBRAFILME – Empresa Brasileira de Filmes S/A, que então comandava a produção de filmes brasileiros, e o Governo do Estado de Minas Gerais, para a produção de longas-metragens. O primeiro fruto desse Polo foi “O Bandido Antônio Dó” de Paulo Leite Soares, feito em 1978.
O segundo concurso de projetos aconteceu em 1980 e premiou dois filmes, “Idolatrada” e “Vivos ou Mortos” de Paulo Leite Soares, que posteriormente teve o título trocado para “Dois Homens para Matar”. “Idolatrada” foi uma história original minha; após a premiação, chamei Mário Alves Coutinho para co-escrever comigo o roteiro que foi filmado.
A produção ficou a cargo do Grupo Novo de Cinema, comandado por Tarcísio Vidigal e Helvécio Ratton. Eu havia conhecido Denise Bandeira, quando ela tinha vindo a Belo Horizonte, para lançar “Marília e Marina”, filme de Luiz Fernando Goulart, do qual era a atriz principal. À época, eu era crítico de cinema e cuidava da divulgação de filmes brasileiros. Nesse trabalho, levei Denise a jornais e tevês, para que ela falasse de “Marília e Marina”. À noite, íamos jantar no Maletta, na Cantina do Lucas, quando encontrávamos amigos e tínhamos boas conversas. Foi quando Denise me disse: -“por que você não escreve uma história para cinema? Acho que você tem o maior pique”! Para mim, isso foi apenas um galanteio, e respondi no mesmo nível: -“claro, vou escrever uma para você”!
Denise voltou ao Rio de Janeiro. Eu, que até então, nunca havia trabalhado com ficção, de repente escrevi a história-base de “Idolatrada” de uma sentada. Mas, sem experiência prática, achei que meu caminho deveria passar por um aprendizado no curta-metragem. Assim, escrevi e dirigi três documentários: “Graças a Deus” em 1978, sobre ex-votos; “Os Verdes Anos” em 1979, sobre a revista “Verde” de Cataguases, premiação em nível nacional da FUNARTE; e “Sinais da Pedra” em 1980, sobre restauração do patrimônio histórico, premiação em nível estadual da recém-criada Secretaria Estadual de Cultura.
Aí veio o segundo concurso do Polo Mineiro de Cinema. Já com alguma experiência na área da criação, eu ainda nada sabia da produção cinematográfica. Paulo Leite Soares, que sabia de “Idolatrada”, então apenas um projeto, disse que eu precisava inscrevê-lo no concurso. Ponderei que eu não tinha como preparar um orçamento de longa-metragem. Paulo se dispôs a fazer isso para mim pois, como me disse, precisávamos mostrar volume de trabalho ao Secretário de Cultura. Só assim “Idolatrada” entrou no concurso – e, para minha grande surpresa, obteve o primeiro prêmio.
Bom, aí a coisa atingiu um nível profissional e só me restava seguir em frente. Das empresas mineiras, o Grupo Novo de Cinema já tinha grande experiência com curtas-metragens premiados. Fiz contato com Tarcísio Vidigal, que se mostrou interessado em assumir a produção do filme. Começamos a selecionar elenco e equipe técnica.
Eu queria melhorar a história; por isso, chamei meu amigo Mário Alves Coutinho, para trabalharmos em cima do meu primeiro tratamento. A contribuição dele foi grande: acrescentou novos personagens, sugeriu nomes, fez com que a história ganhasse corpo. Era a primeira vez que um filme do convênio lidava com uma história urbana, e transformamos Belo Horizonte em uma das personagens principais. Seriam duas épocas, a primeira metade dos anos 30, que seria a base do flash-back, e os dias atuais, no caso os anos 80. Por outro lado, eu conhecia e admirava a canção “Idolatrada”, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Não querendo fazer nada às escondidas, liguei para Fernando, meu amigo, e lhe falei do meu roteiro que tinha o mesmo título que ele dera à sua música. Perguntei se ele via algum problema nisso. Sempre generoso, respondeu que absolutamente não. Fosse eu em frente, desejando-me sucesso. E chegou a visitar uma das locações, acompanhando algumas filmagens.
Escrevemos, eu e Mário, personagens já pensando em determinados atores. Mário Lago, que sempre admirei como ator e ser humano, era um deles. Carmen Silva, que vi e me encheu os olhos em “Guerra Conjugal” de Joaquim Pedro de Andrade, era outra. Fiquei feliz quando ambos aceitaram meu convite. Uma exceção foi a personagem da tia; eu havia pensado em Isabel Ribeiro, que não pôde viver o papel, envolvida que estava em uma gravidez. Acabei chamando Maria Lúcia Dahl e penso que foi uma ótima escolha.
Para a trilha sonora, optei por meu amigo Tavinho Moura, com quem já havia trabalhado em meu curta “Os Verdes Anos”. Tavinho desenvolveu um trabalho primoroso na música para cinema, a partir de “O Homem do Corpo Fechado” de Schubert Magalhães, e os temas que criou para “Idolatrada” se casaram à perfeição com a história que o filme narrava. Tarcísio Vidigal sugeriu outros nomes: Dileny Campos para a fotografia, meu amigo José Tavares de Barros para a montagem, Maria Amélia Palhares como assistente nessas duas áreas.
As filmagens transcorreram sem muitos problemas, a não ser aqueles eventuais que sempre acontecem em locações. Como exemplo, a sequência da praça da Liberdade, filmada em plena madrugada, já que era a única hora em que teríamos tranquilidade. Fazia um frio cortante e toda a equipe teve que se esquentar com alguns goles de bebida. Os proprietários das casas que havíamos escolhido foram muito cooperativos e tolerantes: uma mansão na Cidade Jardim, a belíssima casa do Dr. Renato Falci na avenida Bias Fortes, onde acontece o sarau literário, a casa da tia na rua Paraíba, a casa onde se hospedam a personagem de Denise Bandeira e seu irmão tuberculoso, vivido por José Mayer. Para isso, contei com a ajuda de minha tia, a arquiteta Suzy de Mello, que me informou sobre quais espaços existiam nos anos 30, para que eu não cometesse equívocos históricos. Isso também aconteceu em relação à sequência do Parque Municipal, na qual tivemos que tomar cuidado para não mostrar postes modernos ou edifícios ao fundo da imagem.
Filmagens concluídas, comecei a montagem com José Tavares de Barros na moviola da Escola de Belas Artes da UFMG. Cada pista de som – diálogos, ruídos, música – foi pacientemente construída, colando-se à respectiva imagem. A mixagem final foi realizada no Rio de Janeiro e o material foi encaminhado à Lider, para a montagem do negativo. Aí, era só aguardar o surgimento da primeira cópia.
Começava, então, o percurso da exibição. O melhor caminho para divulgar um filme era participar de um festival de alto nível. Tarcísio inscreveu “Idolatrada” na seleção para o Festival de Gramado, então o mais importante do Brasil. Para minha surpresa, foi selecionado e até ganhou Menção Especial do Júri, na competição vencida por “Sargento Getúlio”.
O lançamento em Belo Horizonte se deu com duas cópias, nos cines Jacques e Roxy. Até onde sei, o filme foi exibido em todas as capitais e principais cidades brasileiras, quase sempre tendo boa recepção crítica. Em São Paulo, foi considerado um dos dez melhores filmes brasileiros do ano. Em Pernambuco, no Rio Grande do Sul e em Brasília, para não falar de Minas Gerais, também foi muito aplaudido. A exceção foi o Rio de Janeiro, onde o ritmo lento não agradou aos críticos de “O Globo” e do “Jornal do Brasil”.
Em termos de bilheteria, “Idolatrada” não foi um grande sucesso, mas também não deu prejuízo. Acabou se pagando, principalmente após ter sido exibido no Festival de Tashkent, na então União Soviética, e ter sido vendido para alguns países na África e Europa. Desde então, vem sendo projetado dentro de programações especiais em espaços especializados, como acontece agora na Sala Humberto Mauro.
Finalizando, posso dizer que meu filme me trouxe muita alegria. Consegui expressar um mundo que existe dentro de mim e que se formou ao longo de minha vida e, melhor que tudo, creio que consegui emocionar algumas pessoas com isso. O que mais poderia desejar?
Este ensaio foi escrito por Paulo Augusto Gomes, crítico, pesquisador e realizador, sobre a obra "Idolatrada" (Paulo Augusto Gomes, Brasil, 1983) exibida durante a mostra de cinema brasileiro "Exagerados: Cinema contra o Baixo-astral" exibida de 9 a 29 de setembro de 2021, em formato on-line. O texto é agora republicado, em definitivo, durante as ações de comemoração do Dia do Cinema Brasileiro.
Sobre o autor
Paulo Augusto Gomes começou na crítica cinematográfica em jornais como “Estado de Minas”, “Diário do Comércio”, “Diário de Minas” e “Suplemento Literário do Minas Gerais”, todos editados em Belo Horizonte. Teve textos incluídos em revistas de circulação nacional, como “Filme Cultura” e “Guia de Filmes”. Textos seus também foram editados em livros como “Cinema em Palavras” e “Os Filmes que Sonhamos”. Como ensaísta, participa de livros como “Godard e a Educação” e “Presença do CEC – 50 Anos de Cinema em Belo Horizonte”. É também pesquisador, integrando o Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro, tendo publicado o livro “Pioneiros do Cinema em Minas Gerais”. Nessas duas especialidades, participou de vários cursos de cinema coordenados pelo Centro de Estudos Cinematográficos - CEC e fez palestras a convite de entidades, como a Universidade Católica de Minas Gerais. A partir de 1978, começou uma carreira como roteirista e diretor de cinema. Escreveu, só ou em parceria, o roteiro de filmes como “Solidão” e “Confronto Final”. Como cineasta, dirigiu vários curtas-metragens, entre eles “Graças a Deus”, “Os Verdes Anos”, “Sinais da Pedra”, “O Horizonte de JK”, “Minas Portuguesa” e “O Doce Segredo de Bárbara”. E também longas-metragens, como “Idolatrada”, selecionado e premiado no Festival de Cinema de Gramado, e “O Circo das Qualidades Humanas” (em parceria com Geraldo Veloso, Jorge Moreno e Milton Alencar Jr.), convidado para o Festival de Cinema de Recife e a Mostra de Cinema de Tiradentes.